O governo brasileiro aposta em quatro frentes paralelas de negociações para ampliar sua rede de acordos de cooperação e facilitação de investimentos (ACFIs) com outros países. A intenção é reforçar a segurança jurídica de investidores estrangeiros no Brasil, principalmente de olho na atração de novos recursos para o programa de concessões e privatizações, um dos mais robustos do mundo. Ao mesmo tempo, busca-se aumentar a proteção para as multinacionais verde-amarelas com operações no exterior.
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Na primeira frente, já foram fechados acordos bilaterais com 17 parceiros diferentes e há conversas exploratórias com nações do Sudeste Asiático e da Oceania. Na segunda, o governo procura incluir um capítulo de investimentos nos moldes dos ACFIs em tratados de livre-comércio que estão em estágio adiantado de negociação, como o Mercosul-Canadá e o Mercosul-Cingapura.
O terceiro trilho foi aberto há poucas semanas. Começaram discussões, no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), sobre um acordo de facilitação de investimentos que venha a cobrir todos os 13 países integrantes da entidade.
Finalmente, na quarta frente, a Organização Mundial do Comércio (OMC) tem um grupo de 107 países tratando da possibilidade de um acordo plurilateral – adere somente quem quiser – sobre o tema. Estados Unidos, União Europeia, China, Canadá e Japão fazem parte do grupo. O Brasil tenta emplacar o modelo de seus ACFIs como base do novo acordo.
O Itamaraty tem conduzido as negociações. No entanto, há algumas ressalvas na equipe econômica sobre a real efetividade dos ACFIs, que são uma inovação brasileira. Para uma ala do Ministério da Economia, eles não são suficientes para dar proteção jurídica aos investidores estrangeiros, por estarem aquém do modelo tradicionalmente preferido pelas nações mais desenvolvidas.
O primeiro acordo de promoção e proteção de investimentos (APPI) foi assinado entre Alemanha e Paquistão, em 1959, e hoje há um estoque de aproximadamente 3 mil deles no mundo.
Tentativas de costurar um tratado global sobre investimentos falharam no passado. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) fez um esforço nos anos 1990 e a OMC chegou a incluir o assunto na Rodada Doha, mas ambos os projetos foram abandonados.
Também na década de 1990, o Brasil firmou APPIs com 15 países – entre os quais Alemanha, Reino Unido, França, Suíça e Portugal. No entanto, o Congresso Nacional negou-se a votá-los e eles acabaram sendo retirados.
Um dos maiores focos de resistência, tanto no Brasil quanto no plano global, estava em duas características desses acordos: a cláusula investidor-Estado e a cláusula de expropriação indireta.
A primeira permite que companhias acionem diretamente um Estado em foros no exterior, como os centros de arbitragem do Banco Mundial (Ciadi) ou da Câmara de Comércio Internacional (ICC). Havia uma percepção de que as soluções de disputas pendiam para o lado do investidor e muitas vezes contrariavam jurisprudências formadas anteriormente por supremas cortes.
Em meio à crise de 2001, a Argentina sofreu mais de 50 processos pela cláusula investidor-Estado. A Bélgica foi alvo de ações devido a medidas tomadas para sanear o sistema bancário em 2008.
No caso da expropriação indireta, investidores podem questionar políticas públicas que têm efeito econômico semelhante, pelo menos em tese, ao de confisco – total ou parcial – de seus ativos no país signatário do acordo.
Ficou muito conhecida a ação movida pela Philip Morris contra o Uruguai, em 2010, no âmbito do acordo bilateral do país sul-americano com a Suíça. Montevidéu havia adotado políticas antitabagistas, como a necessidade de que cada marca de cigarro tivesse uma única variante e 80% da superfície dos maços fosse coberta por imagens advertindo sobre os ricos de males à saúde.
Segundo o embaixador Luiz Cesar Gasser, diretor do Departamento de Serviços e Indústria do Itamaraty, essas cláusulas acabavam gerando uma relação “assimétrica” entre países receptores dos investimentos (normalmente emergentes ou mais pobres) e investidores de economias ricas.
“O jogo começou a mudar mesmo quando países ricos começaram a ser demandados entre si. A opinião pública voltou sua atenção, ONGs se mobilizaram, a academia passou a estudar o tema. A cláusula investidor-Estado, por exemplo, é como um casamento com cláusula de divórcio pré-firmada entre as partes.”
Foi justamente o Brasil quem viabilizou um novo modelo de acordo (o ACFI), assinado pela primeira vez com Angola e Moçambique, em 2015. Já foram celebrados entendimentos com 17 países, como Chile e Emirados Árabes. A tramitação dos acordos, porém, tem durado vários anos. Apenas três – com Angola, com o México e com os três sócios do Mercosul – estão em vigência.
O tratado com o Marrocos, por exemplo, foi enviado ao Congresso em janeiro de 2020. Não tem sequer relator designado na Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Mas a culpa não pode ser atribuída somente aos parlamentares. O acordo com o Equador demorou dois anos para ser enviado pelo Palácio do Planalto ao Legislativo. O entendimento com a Colômbia foi aprovado na Câmara e no Senado. Aguarda promulgação desde abril de 2018.
No lugar da cláusula que permite ao investidor levar um país para arbitragem internacional, os ACFIs só preveem disputas Estado-Estado. Seus defensores enfatizam que eles atuam mais na prevenção de conflitos. Para isso, criam a figura de um “ombudsman” em cada país signatário – autoridade que se encarrega de receber queixas ou demandas dos investidores, para encaminhá-las pelos órgãos oficiais e cobrar soluções. No Brasil, esse papel é desempenhado pela Câmara de Comércio Exterior (Camex).
Esse tipo de acordo também não tem previsão de expropriação direta, “resguardando o espaço regulatório do Estado”, diz o embaixador Gasser. Outra inovação dos ACFIs é o estabelecimento de um comitê conjunto de administração de cada tratado, com consultas contínuas entre os países signatários, e compromissos de responsabilidade social pelas empresas.
“O país se encontra em situação singular, ao se deparar com alguma resistência de parte das principais economias em firmar ACFIs, ao mesmo tempo que a comunidade internacional envolvida com o tema considera o modelo brasileiro digno de apreciação”, afirma Renato Baumann, ex-subsecretário da Camex e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em estudo recente sobre os acordos.
Fonte: “Valor Econômico”, 23/11/2021
Foto: Reprodução