Segundo relatório da OEA, entre 1995 e 2010, país teve 26 casos; no triênio 2011-2013, foram 15 mortes
Com quatro mortes ocorridas no primeiro semestre, o Brasil registrou no ano passado, ao lado da Guatemala, o maior número de assassinatos de jornalistas entre todos os países das Américas, segundo o Relatório Anual sobre Liberdade de Expressão preparado pela relatoria especial do tema na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). O documento, divulgado nesta quinta-feira, relaciona o Brasil entre as nações do continente nas quais houve recentemente avanço significativo de assassinatos de profissionais de comunicação. Em uma década e meia, entre 1995 e 2010, o país testemunhou 26 casos. No triênio 2011-2013, foram 15 mortes. A cobertura de manifestações adicionou perigo ao exercício da atividade jornalística, complementou o órgão, no Brasil e em outros países da região.
Honduras e México são outros Estados com estatísticas de mortes de jornalistas preocupantes. Foram assassinados 18 profissionais no continente em 2013 – todos na América Latina. O relatório completo está disponível no endereço eletrônico www.cidh.oea.org.
“No caso do Brasil, a violência tem estado associada à investigação de esquadrões da morte e do crime organizado, a violações de direitos humanos cometidas pelas forças de segurança do Estado, à corrupção e à conduta de servidores e políticos locais”, afirma o documento, assinado pela relatora especial de Liberdade de Expressão, Catalina Botero, que goza de independência em suas atividades e está no último ano do segundo mandato de quatro anos.
Em 22 de fevereiro do ano passado, o jornalista Mafaldo Bezerra Goes, âncora da Rádio FM Rio Jaguaribe, foi assassinado com cinco tiros em Jaguaribe, no Ceará, após ser emboscado por dois indivíduos. Ele estava recebendo ameaças de morte por denunciar crimes na região.
Num espaço de 40 dias, dois jornalistas foram assassinados em 2013 na região do Vale do Aço, em Minas Gerais. O repórter de Polícia do jornal “Vale do Aço”, Rodrigo Neto de Faria, também âncora do “Plantão Policial” da Rádio Vanguarda, foi morto com dois tiros em 8 de março, em Ipatinga. Ele vinha recebendo ameaças por denúncias de corrupção policial e crimes. Duas pessoas, entre elas um policial, foram indiciadas pelo crime.
Em 14 de abril, o fotógrafo Walgney Carvalho, que trabalhava no “Vale do Aço”, foi assassinado com vários tiros por um motoqueiro enquanto jantava em um restaurante de Coronel Feliciano. O acusado foi um dos assassinos de seu colega Rodrigo, com o qual havia feito reportagens e compartilhado informações.
A última morte registrada no ano passado foi a de José Roberto Ornelas de Lemos, diretor administrativo, jornalista e filho do dono do diário “Hora H”, de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, no estado do Rio. Ele já havia sofrido um atentado em 2005. O periódico é especializado em cobertura policial. Emboscado por quatro homens em uma padaria, José Roberto foi alvo de mais de 40 tiros em 11 de junho.
O Estado, recomenda a Relatoria, deve reforçar seu papel de protetor da integridade dos profissionais de comunicação e enfatizar a investigação dos casos de violência, conforme o item 9 da Declaração de Princípios de Liberdade de Expressão da CIDH, adotada em 2000. O órgão observa que o Brasil precisa oferecer proteção adicional às testemunhas deste tipo de crime, que acabam muitas vezes assassinadas, o que promove a impunidade.
“O assassinato, o sequestro, a intimidação e/ou as ameaças a comunicadores sociais, bem como a destruição de meios (e instrumentos) de comunicação, violam os direitos fundamentais dos indivíduos e restringem severamente a liberdade de expressão. O Estado tem o dever de prevenir e investigar essas ocorrências, punir os culpados e assegurar que as vítimas recebam a devida compensação”, diz o Princípio 9.
Segunda a relatoria, há, porém, progresso no Brasil no combate à violência contra jornalistas. O documento lista uma série de decisões judiciais condenando assassinos de profissionais de imprensa como avanço em relação à impunidade – citando o julgamento dos assassinos do repórter da TV Globo Tim Lopes como exemplo para toda a América latina – e saúda a criação do Grupo de Trabalho federal sobre direitos humanos dos profissionais de mídia.
A intenção do governo de criar programa especial de proteção a jornalistas foi considerada uma das ações de destaque nas Américas em 2013, ao lado de iniciativas semelhantes de México, Honduras e Guatemala. Também é vista como medida acertada o projeto de lei que dá à Polícia Federal autorização para investigar crimes contra jornalistas e a mídia de forma geral.
Documento destaca protestos do ano passado
O relatório dá importância especial aos protestos do ano passado, que levaram milhões às ruas brasileiras em diversos estados. A Relatoria de Liberdade de Expressão recebeu 56 denúncias de casos de violência contra jornalistas em apenas cinco meses, englobando agressões por policiais (28) e manifestantes (16), uso deliberado de balas de borracha contra quatro profissionais de imprensa – com danos permanentes de visão a alguns deles – e a prisão arbitrária de sete repórteres durante a cobertura dos eventos.
O documento, porém, menciona o relatório da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) pelo qual a contabilidade sobe para 102 ataques a jornalistas, dos quais 77 realizados por forças policiais.
A Relatoria enfatiza a necessidade de o Estado implementar as diretrizes da Declaração Conjunta (com a relatoria da Organização das Nações Unidas) sobre Violência contra Jornalistas na Cobertura de Protestos, do ano passado, pela qual o trabalho da imprensa deve ser protegido, com a adoção de protocolos pela Polícia com esta finalidade, e o acesso aos locais deve ser viabilizado, para garantir o direito à informação da população. As autoridades devem vir a público condenar agressões aos profissionais de comunicação.
Iniciativas do governo brasileiro foram elogiadas pela Relatoria. Entre os destaques estão a resolução do Centro de Defesa de Direitos da Pessoa Humana da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência recomendando que não sejam utilizadas armas de fogo e seja restrito o uso de ferramentas como gás lacrimogêneo e sprays de pimenta pela Polícia em manifestações e a criação de um grupo para estudar a regulamentação dessas armas não-letais.
O órgão da CIDH também recomenda o treinamento de jornalistas para situações de risco – como coberturas de manifestações e áreas conflagradas – pelos veículos de comunicação.
Outro tema que suscita a preocupação da Relatoria é a grande quantidade de ações criminais contra jornalistas, condenados por calúnia, difamação, desacato e injúria à prisão e ao pagamento de compensação financeira, conforme prevê o Código Penal, de 1940 e atualmente em revisão pelo Congresso Nacional. O documento sugere que juízes não observam o critério de proporcionalidade nas sentenças e que políticos, autoridades e servidores estão entre os principais litigantes da imprensa.
Comentários negativos contra o senador José Sarney em um blog levou a Justiça Eleitoral do Amapá a condenar a jornalista Alcinéa Cavalcanti, que teve contas e bens bloqueados, a pagar R$ 2 milhões em indenização. O jornalista Luiz Carlos Bordani, foi condenado a pagar R$ 200 mil ao governador de Goiás, Marconi Perillo, e retirar do ar todo o conteúdo de seu site relativo ao político.
Em Sergipe, ocorreu o mais curioso caso do ano passado. O jornalista Cristian Goes foi condenado a sete meses e 16 dias de prisão e indenização de US$ 150 mil por crime de injúria contra um juiz que se sentiu ofendido por um texto de ficção, intitulado “Eu, o coronel em mim”, que o profissional publicou em seu blog.
Em audiência na CIDH ano passado, a relatora especial Catalina Botero já havia advertido o Brasil sobre os riscos de se manter a criminalização da opinião, representada pelas tipificações de calúnia, difamação, injúria e desacato. A Relatoria, que apresentou a pedido do Brasil parecer sobre a reforma do Código Penal, faz ressalvas sobre o projeto de lei, de autoria de Sarney.
O PL acaba com a figura do desacato, mas mantém a qualificação para ofensa a funcionários públicos e sobe o acréscimo de tempo de prisão para 50% nestes casos. Calúnia, injúria e difamação têm a pena máxima elevada a 3 anos.
– A Corte Interamericana de Direitos Humanos já deixou claro que este tipo de norma penal, que pode incidir sobre o vigor, a abertura e a desinibição do debate público, tem que respeitar a Convenção Americana. É importante revisar as normas de desacato, não porque não tenham honra os funcionários públicos, mas pelo dano que essas normas podem causar ao debate democrático. A ameaça de prisão produz medo, intimidação, especialmente a jornalistas de áreas mais vulneráveis – afirmou Catalina Botero em outubro do ano passado.
O relatório faz análise especial da situação da internet no contexto da liberdade de expressão. O Marco Civil da Internet, sancionado ontem pela presidente Dilma Rousseff, é elogiado como referência para as Américas. São elogiadas a garantia de neutralidade da rede, a proteção dos intermediários (como sites de notícias, em relação a obrigação de controle de conteúdo publicado outro que pornografia) e os mecanismos de incentivo ao acesso à rede.
Fonte: O Globo
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