Rudi Dornbusch, um conceituado economista que morreu em 2002, dizia que existem dois tipos de crise monetária. A crise pré-anos 90 é do tipo que avança lentamente. Ela começa com uma taxa de câmbio supervalorizada, que dá origem a um déficit comercial. Reservas em moeda estrangeira, então, começam a ser gastas gradualmente para cobrir esse déficit. Quando elas se esgotam, a moeda despenca e o ministro da Fazenda é demitido. Mas a vida continua e o mundo não entra em colapso.
O segundo tipo de crise é simplesmente o primeiro bombado a esteroides. Um país que esbanjou empréstimos do Banco Mundial em políticas erradas ainda consegue ir ao mercado de capital global em busca de bilhões de dólares para continuar usando mal. Bancos domésticos entram na festa. A economia continua crescendo. Quando o fluxo de capital se reverte subitamente, a moeda despenca e a falência se generaliza. O estrago é suficientemente grande para afetar outros países.
O Brasil parece precisar de um terceiro tipo de crise para se enquadrar. As eleições deste mês vão decidir quem será o próximo presidente e qual será o perfil do novo Congresso.
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Os dois corpos de governo vão então definir a resposta a uma crise financeira de avanço lento. O drama pode se limitar ao mercado financeiro. Já seu impacto pode ir mais longe. O Brasil, porém, não mostra sinais de uma crise de balança de pagamento à moda antiga. O País não está à mercê do capital global. Sua crise, em essência, é uma batalha consigo mesmo.
Compare-se o Brasil à Argentina e à Turquia, que entraram ambos neste ano no olho das tempestades do mercado. Eles mostram o quadro de uma crise monetária. Ambos têm grandes déficits na balança corrente, um forte componente da balança comercial. Esses déficits foram financiados com empréstimos estrangeiros, a maioria deles em dólar. Os dois países têm inflação alta. Em ambos as reservas em moeda estrangeira são baixas. O Brasil é diferente. Sua balança corrente está bem equilibrada. A inflação está próxima de um recorde de baixa. Suas fortes reservas monetárias ultrapassam em muito sua dívida em dólares.
O problema do Brasil é que as finanças do governo estão num caminho perigoso. A dívida pública cresceu de 60% para 84% do Produto Interno Bruto (PIB) em apenas quatro anos. Isso se deve em grande parte a um colapso na receita depois de 2013. A recessão brutal também não ajuda. Mas o Orçamento tem sido beneficiado por inesperadas receitas de um boom na mineração e por um consumo alimentado pelo crédito.
A terceira via. Isso significa que cortes em gastos são necessários para consertar as finanças públicas. A massa salarial do governo cresceu rapidamente. Mas as pensões excessivamente generosas são um problema muito maior. Elas já representam 55% dos gastos públicos sem juros. O custo continuará aumentando conforme o Brasil envelhece. As coisas certamente seriam piores se não fosse por uma emenda constitucional em 2016, que limita o aumento dos gastos públicos. Uma tentativa de reforma nas aposentadorias foi abortada quando o presidente Michel Temer foi implicado nos escândalos de corrupção que viram um de seus antecessores sofrer o impeachment e outro foi enviado para a cadeia.
Em um Brasil diferente, a política buscaria a conciliação das reivindicações dos detentores de títulos (que são quase todos os poupadores brasileiros), aposentados, funcionários públicos bem pagos e o restante do País. Em vez disso, para equilibrar as contas, o último desses grupos sofreu um aperto nos serviços públicos e nos padrões de vida. E a crise da corrupção tragou a classe governante. Os principais candidatos à Presidência são figuras polarizadoras que podem ter dificuldades para conduzir a reforma previdenciária através do Congresso. O ponto crítico pode vir em agosto do ano que vem, se não antes, diz Arthur Carvalho, do Morgan Stanley, quando um Orçamento para 2020 será submetido. Se a reforma da Previdência não estiver em vigor, será necessário um grande aperto em outros lugares para que o País fique abaixo do limite de gastos, diz ele. Ou o próprio limite terá de ser elevado.
Os portadores de títulos ficariam assustados. Embora os estrangeiros tenham pouco da dívida do Brasil, ainda haveria fuga de capitais, uma moeda em queda e aumentos no rendimento dos títulos. Com os poupadores brasileiros antecipando a inflação e o caos que resultaria da crescente dívida pública, eles procurariam escapar dela. Os poupadores em outros lugares da América Latina há muito usam contas em dólar como um escudo contra a inflação. Isso seria novidade para os brasileiros, diz Carvalho. Mas como as taxas de juros de curto prazo foram reduzidas para refletir a inflação moderada, o custo de oportunidade de retirar dinheiro do Brasil raramente foi menor.
Nada jamais é inteiramente novo. Os sintomas das crises anteriores no Brasil foram inflação alta e déficits externos. Mas abaixo da superfície, o problema subjacente era a política fiscal negligente, diz Arminio Fraga, da Gávea Investimentos, um fundo de hedge, e ex-governador do Banco Central do Brasil. No tipo de crise de evolução lenta, disse Dornbusch, uma correção no meio do caminho pode evitar o pior. O Brasil ainda pode administrar isso. Se não puder, seu declínio provavelmente vai se acelerar drasticamente.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”