Criada em 2010 para promover uma depuração ética na lista de políticos que pleiteiam disputar cargos eletivos, a Lei da Ficha Limpa enfrentará seu mais duro teste em outubro e poderá banir das urnas políticos que, a partir de seus currais eleitorais, se perpetuavam impunes na administração pública. Pela primeira vez, a lei será aplicada a deputados, senadores, governadores e candidatos à Presidência da República.
Ainda que a lei esteja plenamente em vigor, o Ministério Público Eleitoral, responsável por contestar pelo menos 360 candidaturas – número que vai aumentar nas próximas semanas – com base na nova legislação de inelegibilidades até agora, prevê que políticos e advogados devem utilizar as mais diversas artimanhas para explorar brechas na Lei da Ficha Limpa e se apresentar normalmente como opção ao eleitor. Desde o início do mês, procuradores se lançaram em uma verdadeira cruzada contra políticos enrolados na Justiça, mas manobras e lacunas na lei acabam permitindo que corruptos sigam adiante nas urnas.
A exigência de ficha limpa nas eleições não é criação brasileira. Estados Unidos, Espanha, África do Sul, Uruguai, Luxemburgo, Austrália, França e Bélgica também têm legislações que impedem, em diferentes situações, a candidatura de condenados, mas nenhuma delas é tão abrangente quanto a versão sancionada no Brasil em junho de 2010. Entre os australianos, por exemplo, são inelegíveis para os cargos de senador e deputado federal pessoas penalizadas a mais de um ano de prisão, independentemente do crime cometido. Na Espanha, são barrados os condenados por terrorismo e crimes contra as instituições do Estado, mesmo que ainda recorram da sentença.
No Brasil, mesmo tendo sido apontada como marco moralizador na seara política, a Lei da Ficha Limpa não consegue retirar da vida pública boa parte dos candidatos enrolados com a justiça. Até a última sexta-feira, o banco de dados do MP registrava 605.081 informações sobre possíveis casos de inelegibilidade, que vão desde contas rejeitadas em municípios até condenações por tráfico de drogas e assassinato. Descontados os dados em duplicidade e as informações de pessoas que acabaram não se candidatando, é a partir dessa cifra que procuradores eleitorais partem para elaborar os pedidos de impugnação. Em todo o país, 1.850 candidaturas estão sendo contestadas por ações apresentadas pelo próprio MP ou por partidos e políticos.
Lacunas
Desde as últimas eleições, os procuradores mapeiam brechas que podem jogar por terra a inelegibilidade de um candidato e permitir que corruptos disputem normalmente o processo eleitoral. Para integrantes do Ministério Público, uma das principais lacunas da lei é a que permite que a Justiça suspenda a proibição do candidato disputar caso considere que ele pode reverter a condenação que o deixou de fora das urnas. O artigo 26-C da Lei da Ficha Limpa estabelece que “o órgão colegiado do tribunal (…) poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal”.
“A nossa tradição era a de produzir efeitos das decisões judiciais depois que elas transitaram em julgado. Como isso não estava produzindo efeito, porque as decisões demoram uma eternidade, o legislador trocou esse valor da segurança jurídica pelos valores da moralidade. Mas isso gera um problema, porque se tem uma decisão que é reversível e pode deixar de acontecer até o fim da eleição. Se o juiz entender que o recurso é muito plausível e que aquela decisão parece estar errada, ele pode fazer isso. Mas é uma brecha que jogou a responsabilidade para o tribunal superior. O ideal seria que a inelegibilidade fosse decorrente do trânsito em julgado, mas que esse transito em julgado ocorresse logo”, afirma o procurador eleitoral Elton Ghersel.
Entre as catorze hipóteses para barrar um político nas eleições, a Lei da Ficha Limpa também prevê, por exemplo, que condenados por improbidade administrativa sejam impedidos de disputar a preferência do eleitor. Mas no registro das candidaturas, nem a Lei Eleitoral nem resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) exigem que os candidatos apresentem certidões cíveis, documentos onde ficam registradas essas ações de improbidade. A partir do registro de cada candidato, o Ministério Público tem apenas cinco dias para contestar a pretensão do político ao cargo e corre contra o tempo para encontrar irregularidades.
Quando os procuradores se deparam com notórios fichas sujas, como o ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, e o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, conseguem impugnar as candidaturas mesmo se eles marotamente tiverem omitido as certidões cíveis. Com um universo de mais de 24.000 candidatos nas eleições deste ano, porém, boa parte dos candidatos – desconhecidos – passa imune à peneira da Lei da Ficha Limpa. Situação parecida ocorre quando candidatos tentam ser eleitos após terem sido condenados por conselhos profissionais. A Lei da Ficha Limpa determina a inelegibilidade dos que foram excluídos do exercício da profissão por faltas ético-profissionais, mas no registro da candidatura não é exigido nenhum atestado de nada consta de conselhos profissionais. Mais uma vez, cabe ao Ministério Público organizar um mutirão para encontrar os condenados profissionalmente e questionar suas candidaturas.
Em 2012, quando a Lei da Ficha Limpa foi aplicada pela primeira vez, a reprovação de contas de prefeitos e vice-prefeitos foi a principal causa de registros negados pela Justiça Eleitoral. Mas também neste ponto da lei os fichas sujas utilizam interpretações conflitantes nos tribunais para seguir em frente com as candidaturas. Embora alguns tribunais tenham considerado que a rejeição de contas é suficiente para tornar o candidato inelegível, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem decisões que exigem a reprovação das contas também pelos legislativos municipal, estadual ou pelo Congresso, o que permite que políticos avancem no processo eleitoral mesmo com aparente violação à Lei da Ficha Limpa.
“Antes, ao se deparar com uma irregularidade, o próprio tribunal de contas poderia declarar um candidato inelegível. Hoje tem de ser um ato de improbidade doloso e será o juiz eleitoral que dirá se a prática foi ou não proposital. Com essa mudança, o caso para na Justiça e torna o processo muito mais demorado. São tantas ações que talvez o MP não consiga aplicar tudo que saiba. Eles não têm tempo. Com isso, um ou outro candidato irregular acaba sendo beneficiado e liberado para disputar as eleições”, afirma Walter Costa Porto, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Pelo fato de as novas regras de inelegibilidade terem sido aplicadas apenas nas eleições de 2012, quando foram eleitos prefeitos e vereadores, a Justiça Eleitoral ainda não enfrentou todas as possibilidades de questionamento da lei, o que amplia ainda mais as brechas e contestações judiciais. O ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, por exemplo, foi condenado em segunda instância por improbidade dias depois de apresentar o registro de sua candidatura na Justiça Eleitoral, mas poderá receber aval para concorrer e ficar inelegível apenas em 2016. A brecha que beneficia o político se baseia no fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decisões segundo as quais o único momento para enquadrar os políticos na Lei da Ficha Limpa é o registro da candidatura, quando Arruda ainda não tinha sido penalizado pela justiça.
“A lei precisa ser interpretada e agora é hora de os tribunais fazerem construções jurisprudenciais. Doutrina e jurisprudência são justamente o que aperfeiçoariam a aplicação da Ficha Limpa. É, sem duvida, o que deve acontecer de agora em diante. A lei é nova e ainda não tem casos precedentes”, aponta o ex-presidente do TSE Carlos Velloso. “A lei foi avanço enorme no processo eleitoral brasileiro. Se existe alguma brecha, nós vamos sustentar a aplicação em sua inteireza”, afirma o procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Fonte: Veja.
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