Após muitas dúvidas e pressões de toda ordem, a colenda Suprema Corte foi modelar no julgamento da Ação Penal 470, o famigerado mensalão. Aos olhos de todos e sem rebuços, os fatos foram postos e as provas, analisadas com rigor técnico, o devido processo legal foi respeitado para todos os litigantes, vindo, ao final, o veredicto com o saber inerente das decisões colegiadas. Se a Corte acertou ou errou, os eventuais prejudicados poderão fazer uso da ampla defesa e utilizar os recursos potencialmente cabíveis com vista a reformar o que mal está. Naturalmente, os magistrados supremos não são deuses e, como homens e mulheres que são, estão sujeitos à falibilidade humana. Além disso, compete à crítica jurídica fazer a sua parte, apontando eventuais equívocos e realçando a higidez técnica das posições vencedoras. Enfim, o histórico processo seguirá seu trâmite normal, trazendo consigo a certeza de que o Brasil está melhor. E está melhor porque não existe democracia digna sem responsabilidade política. O Supremo, assim, cumprindo o seu dever constitucional, deu importante passo para o aprimoramento institucional brasileiro.
Apesar de julgado, o mensalão, na crueza dos seus tristes fatos, revela uma certeza preocupante: a democracia brasileira foi posta em xeque e correu o risco de ter virado pó. Não se trata de um juízo meramente subjetivo nem despido de razões substanciais. Afinal, os fatos, antes questionáveis, com o julgamento ganharam foro de indiscutibilidade. Em outras palavras, a partir da pontual e objetiva peça de acusação, a abalizada maioria da Suprema Corte reconheceu a existência de uma estrutura criminosa, arquitetada nas entranhas do poder, cujo objetivo – mediante compra ilícita e corrupta de apoio congressual – era subjugar o Legislativo aos desideratos imperiais de determinado grupelho político. Se vingasse o plano delituoso, as eleições presidenciais virariam um jogo de cartas marcadas em favor de tiranos fantasiados de democratas populares. Passou perto. Com a graça dos céus, foi-se. Agora, será que pode voltar? A pergunta, por inquietante e imprevisível, merece profunda reflexão.
Pois bem, nos límpidos termos da Lei Fundamental da República, o mensalão foi um caso acadêmico de impeachment. Objetivamente, além de um atentado contra a própria Constituição federal, a conduta criminosa violou o livre exercício do Poder Legislativo, agrediu o desempenho soberano dos direitos políticos e violentou explicitamente a probidade na administração pública, ou seja, o mensalão está capitulado no artigo 85, caput, incisos II, III e V da Carta de 88. Por assim o ser, nos termos do artigo 86 da Lei Constitucional, o processo deveria ter sido instaurado perante a Câmara e, uma vez admitida a acusação pelo quórum especial de dois terços, o feito teria de ter sido encaminhado ao Senado para o consequente julgamento dos possíveis crimes de responsabilidade. Por motivos ignorados, a regra constitucional não teve o prestígio merecido.
Acontece que o impeachment é um processo anacrônico, lerdo e solene, contrário à dinâmica dos fatos políticos e à própria velocidade natural dos acontecimentos. Logo, o trâmite processual, em vez de paz social, pode causar traumatismos ainda maiores, sendo cogente, portanto, uma conjunção especial de fatores a legitimar o início do procedimento de responsabilização pública. Aqui, aliás, estamos diante de uma das principais deficiências do sistema presidencial: o vagaroso processo de responsabilização do governo. Aquilo que, no sistema parlamentar, é resolvido em questão de horas com a moção de desconfiança e queda do Gabinete constituído, no presidencialismo gera um processo político moroso que, em certas circunstâncias, pode levar o país a um perigoso brete institucional. É certo que no caso Collor – ainda no amanhecer da democracia brasileira e no fulgor do desejo de livre e direta participação política – condições especialíssimas se verificaram a autorizar um canônico desenrolar processual. Todavia, na generalidade das hipóteses de infração político-administrativa do presidente da República, serve a nobre advertência de Raul Pilla de que o processo por crime de responsabilidade é “um canhão de museu, que existe para ser visto, e não para ser utilizado”.
Embora fosse um exército de um homem só pela ideal parlamentarista, o catecismo de Pilla encontrou eco e voz em outra proeminência inigualável da vida política e jurídica brasileira. Com a agudeza encantadora dos espíritos superiores, Paulo Brossard, em conhecida e insuperável monografia sobre o tema do impeachment, escreveu como se enxergasse o futuro: “Suponha-se um presidente desabusado, violento, agressivo, inescrupuloso, corruptor, que recorra aos imensos poderes e recursos sobre os quais o governo tem mão, e com eles desencadeie luta contra o Congresso”. E concluiu com a precisão habitual: “Antes que o processo chegasse em meio, teria ele levado o país à desordem, à violência, à convulsão, ao caos, ao pânico”. A análise do eminente jurista gaúcho é absolutamente irretocável, expondo com nitidez e clareza uma das mais graves deficiências do sistema presidencial: o processo de responsabilização do governante é um convite à irresponsabilidade política. E democracia sem responsabilidade é como um casamento sem amor: enquanto os interesses coincidirem, vive-se uma infindável felicidade de aparências. Depois, as máscaras caem e, aí, salve-se quem puder.
Apesar de todos os usos e abusos do mensalão, a democracia brasileira sobrevive e, a partir do firme e seguro desempenho do Supremo Tribunal, sai do episódio com força para não mais tolerar a impunidade reinante. Mas é bom que fique registrado que não se deve brincar com certos perigos políticos, pois o arbítrio é um convidado indigesto que não pede para entrar e faz de tudo para ficar. Agrava a situação este presidencialismo de partidos tíbios que enfraquece o papel político do Parlamento e faz pensar que o ocupante do Palácio do Planalto é rei.
Enfim, cabia impeachment, mas ele não viu e não sabia de nada. Aliás, será que um dia ele falará o que sabe e bem viu? Ou será que a língua o gato comeu?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 09/01/2012
Já à época comentei com amigos que o mensalão não foi criado por aquele grupo. O grupo apenas fez do operador um “companheiro de viajem” que agora foi deixado à própria sorte, já que não pode ser “eliminado”. Aquele grupo apenas aperfeiçoou e ampliou o que um governador mineiro, hoje senador, criou e do qual ninguém fala nem acusa.