Um deputado federal está preso no regime semiaberto por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), condenado por ter falsificado um documento para fraudar uma licitação. A Câmara manteve seu mandato intacto. Ele sai todo dia da penitenciária da Papuda, comparece às sessões, vota em Projetos de Lei, emendas e até denúncias contra o presidente da República. Mas não só. Também recebe R$ 4.200 por mês de auxílio-moradia. Para ficar na cadeia.
Lá mesmo na Câmara, uma jovem deputada chamava a atenção no plenário por conciliar beleza e capacidade de articulação. Foi escolhida relatora de uma das peças mais complexas e sensíveis dos últimos tempos: a reforma política – a do voto distrital misto, distritão, lista fechada, cláusula de barreira e toda aquela complicação. Na semana passada, ela se tornou alvo de uma denúncia por uma prática política que resiste a qualquer reforma: compra de votos para a eleição do ex-marido, em Roraima.
Num pedido de 207 páginas, a ministra Luislinda Valois exigia acumular seu salário de desembargadora aposentada com os proventos de ministra e, em violação ao teto constitucional do funcionalismo público (R$ 33.700), passar a receber R$ 61.400 por mês. No pedido, ela se saiu com a seguinte frase a respeito de sua atividade: “Sem sombra de dúvidas, se assemelha ao trabalho escravo, o que também é rejeitado, peremptoriamente, pela legislação brasileira desde os idos de 1888 com a Lei da Abolição da Escravatura”. Ministra dos Direitos Humanos, Luislinda deve acreditar lutar contra a escravidão ao defender seu salário exorbitante.
O deputado que quer ser presidente admite que não entende nada de economia. O ministro que entende de economia não sabe dizer se quer ser presidente. A presidente do STF precisa da ajuda do decano, voto vencido, para explicar o voto dela própria, vencedor. O Brasil não está fácil – e não é de hoje. “É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o país”, escrevia Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista Sérgio Porto, na abertura do Febeapá, festival de besteira que assola o país.
Publicado em três volumes nos anos 1960, é uma obra mais relevante para entender o Brasil do que compêndios de história, sociologia e antropologia. Com a ajuda dos leitores, Sérgio reunia dezenas de exemplos de nosso besteirol atávico, apresentados com humor inigualável. Sua morte prematura aos 45 anos, em 1968, deixou o trabalho pela metade. Os últimos 50 anos teriam alimentado mais 50 volumes de Febeapá. Fácil. Desde os tempos de Sérgio, pouco – se algo – mudou na mentalidade bacharelesca do brasileiro, no moralismo hipócrita, na reverência bocó às “otoridades”, na palermice disfarçada de esperteza e, acima de tudo, na imbecilidade incurável, nossa maior maldição, hoje amplificada pelas redes sociais.
Uns põem a culpa na direita, outros na esquerda. Mas o besteirol é ambidestro. Como explicar que o relatório da CPI da Previdência afirme que não existe déficit – só faltará é dinheiro para pagar os benefícios? Que alguém construa ciclovias achando mesmo que o paulistano iria de bicicleta ao trabalho? Que queira criar multas para pedestres e ciclistas sem ter como indentificá-los? Ou ainda que minha filha de 17 anos não pudesse, até a semana passada, visitar uma exposição sobre sexualidade no Museu de Arte de São Paulo, mesmo autorizada pelos pais?
O Febeapá surgiu depois da “redentora”, apelido que Sérgio deu ao Golpe de 1964. Era um tempo em que censores proibiam fantasias de Carnaval e metiam a colher até no comprimento das saias. “Em Sergipe, quem entende de teatro é a polícia”, dizia o secretário de Segurança ao proibir uma peça. Em São Paulo, foram prender o autor de Electra, o grego Sófocles. Também era um tempo em que Sérgio podia chamar Pierre Cardin de “bicharoca parisiense” e louvar o “tamanho universal” das certinhas do Lalau sem medo das patrulhas. Elas estavam ocupadas demais em caçar os comunistas que infestavam o país, ofendiam os bons costumes e, bem, comiam criancinhas.
Parece que hoje a meta dos comunistas não é tão diferente: querem legalizar pedofilia, zoofilia e outras práticas abjetas, ensina um filósofo. Precisam ser detidos. Daí os ataques a exposições, os protestos contra palestras, apresentações de músicos, os latidos histéricos nas redes sociais. O ódio ideológico, indiferente aos bons modos, aos fatos ou à história, lança a ciência, o secularismo, o islamismo e até o nazismo no mesmo balaio do comunismo. O outro lado, também cego pela ideologia, é tão feroz quanto. Policia o discurso, quer censurar filmes, jornais e até palavras. Em seu tempo, Sérgio resumia tudo com uma frase melancólica de Alceu Amoroso Lima: “A maior inflação nacional é de estupidez”. De lá até hoje, ela só fez crescer.
Fonte: “Época”, 12/11/2017
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