Somos efetivamente uma sociedade pluralista. Ainda distantes de uma Grande Sociedade Aberta, onde há menos agressividade com as diferenças de opinião, mas certamente a caminho. Explodem os mais diversos pontos de vista a respeito de tudo o que comove a opinião pública. Mas os debates refletem ainda uma busca impositiva de consenso, quando o esperado é justamente a tolerância com a diversidade de opiniões.
Os médicos praticaram o aborto para evitar a indesejável maternidade de uma menor estuprada pelo padrasto? Ou para salvar a vida de uma menina de 9 anos, grávida de gêmeos, sob o risco de hemorragia por ruptura uterina? Para o religioso, a causa do aborto é irrelevante. Uma razão humana, menor ante a lei divina. O condenável é a supressão de duas vidas, dádivas de Deus. A excomunhão dos envolvidos no aborto exprime essa condenação escorada na doutrina da Igreja.
A mídia repercute, por sua vez, a opinião pública. E a maioria está de acordo com a manifestação do presidente Lula: “Entre os médicos e os religiosos, a medicina está mais certa do que a Igreja.” O arcebispo, em resposta, sugere a Lula “procurar a assessoria de um teólogo para se habilitar a falar de temas ligados à religião”.
O conselho foi o mesmo, mutatis mutandis, que dei a um secretário-geral da CNBB há 20 anos, na primeira edição do já tradicional Fórum Nacional, promovido pelo ex-ministro Reis Velloso. O religioso pontificava sobre as taxas de juros, a dívida externa e outros assuntos econômicos em nome da redução da pobreza no Brasil.
Para que compreendesse quão inadequados ou mesmo grotescos pareciam seus argumentos aos ouvidos especializados, perguntei-lhe: “A Igreja está disposta a contribuir de forma mais efetiva a reduzir a miséria no Brasil? O senhor reconhece que a taxa de natalidade é maior entre os pobres? Não há município brasileiro sem uma igreja católica. É extraordinária a capilaridade dessa rede de solidariedade humana. Sua cooperação para distribuir preservativos reduziria a proliferação da miséria e extinguiria a indústria do aborto. Mas, apesar da boa intenção, a proposta não refletiria completo despreparo a respeito da doutrina da Igreja? Pois foi como eu me senti ouvindo, também a despeito de suas ótimas intenções, suas propostas econômicas.”
Em uma sociedade aberta, as circunstâncias em que o aborto é legal estão definidas. A menina e os médicos nada têm a temer. A Igreja Católica – que, passando das missas em latim ao engajamento político, continuava perdendo espaço ante os pastores eletrônicos do protestantismo – vive novo episódio de falta de comunicação e distanciamento espiritual. Mas tem o direito de interpretação segundo sua doutrina. Apenas seria mais popular se excomungasse assassinos. Cabe à Justiça a punição exemplar como alerta para prevenir o crime em si. E Lula ganha popularidade distribuindo camisinhas no carnaval. Cada macaco no seu galho.
(O Globo – 09/03/2009)
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