Visitei uma grande empresa no Rio Grande do Sul. Palestrei, aprendi e descobri. Sinto-me feliz ao ser recebido em Manaus do mesmo modo com que sou acolhido no extremo sul do Brasil. Na minha primeira vida, quando estudava sociedades tribais brasileiras, ficava abismado quando nos mais humildes lares sertanejos, e mesmo entre alguns indígenas, a conversa era interrompida em nome de um cafezinho hiperdoce com a seguinte observação: que não reparasse na xícara nem no bule – eram de pobre -, mas tomasse a bebida feita com gosto e amizade. O cafezinho é a prova de hospitalidade mais pungente da nossa sociedade. Ele é também e o obséquio mais trocado entre pessoas no Brasil.
Nesta ultramoderna empresa do Sul não foi exceção. Cheguei e, ato contínuo, ofereceram-me um cafezinho fresco e quente que tomei com o sentimento de estar usufruindo algo que faz o brasil, Brasil. O calor do café forte e doce sinaliza o afeto de quem o oferece. O doce tira do negrume da bebida o seu ar de mistério, dando-lhe o toque de inocência característico das coisas benévolas. O amor e a compaixão são doces como doce é a compreensão, a paz e a concórdia.
Na friorenta manhã do dia seguinte vou para o aeroporto muito cedo. Sou o primeiro a chegar. Meu pai, Renato, fazia o mesmo. Ele nos obrigava a sair de casa e seguir para as rodovias e estações de trem, quando viajávamos de Juiz de Fora e São João Nepomuceno para Niterói, nas férias de verão, muitas horas antes da partida. Ficávamos, meus irmãos e eu, brincando entre as malas, enquanto papai bufava de nervoso, olhando o seu relógio Omega de ouro ou acertando o seu chapéu que, como dizia meu amigo Mauricio Macedo, dava-lhe um ar de detetive de cinema.
No espaço público administrado pela Agência de Aviação Civil, fiquei a experimentar contrastes. O aeroporto é um mero nome, pois ele nada tem a ver com a modernidade dos aviões que despejam no seu espaço ridiculamente pequeno, dotado de algumas cadeiras desconfortáveis, um banheiro pífio e uma sala de embarque minúscula e sem forro, centenas de passageiros famintos (que, como condenados, comem uma sacolinha de biscoitos com gosto de creme de barbear), aturdidos pelo confinamento e pela ineficiência vergonhosa do lugar. Como tenho o tempo do pai, observo a chegada dos passageiros morrendo de frio. Numa sala de espera sem forro e com poucas cadeiras, tenho uma boa visão da pista e dos empregados que carregam malas e pacotes. Tudo realizado a braço – os carrinhos sendo empurrados pelos peões tal como faziam os escravos de um Brasil que continua tão presente quanto o meu iPhone que desligo. O que testemunho, protegido pelos vidros, é o trabalho desses mesmos escravos fazendo seu velho trabalho braçal em contraste com o moderno pássaro voador que estava para pousar vindo de fora e do céu.
Pavoroso e exemplar contraste entre a esfera privada onde tudo correu perfeitamente bem e a pública onde o tal “Estado” faz, mais uma vez, prova de um estilo de gerenciamento emperrado, partidarizado, sectário, ineficiente e, sobretudo, corrupto. Onde foram parar as tais “verbas” dos tais “planos” e “projetos” que são parte destes governos lulo-petistas? Somem pelo ralo dos laços de partido, família e amizade que sempre consumiram a esfera do poder público à brasileira…
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Milan Kundera conta o seguinte: uma comunista militante é julgada por crimes que não havia cometido. Sustentou sob tortura a sua verdade, demonstrando uma extraordinária coragem diante dos seus algozes. Condenada, cogita-se sobre seu enforcamento, mas, mesmo numa Praga stalinista, há misericórdia e ela segue para a prisão perpétua. Findo o comunismo, seu caso é revisto e, depois de 15 anos, ela sai da prisão e vai morar com o filho pelo qual, por toda a cruel separação, tem um apego desmesurado. Um dia, Kundera visita sua casa e a encontra chorando copiosamente. Apesar de ter 20 anos, ele é preguiçoso, diz. Kundera argumenta que esses são problemas menores. Mas o filho, indignado, defende a mãe com veemência: ela está certa, sou egoísta e desonesto, espero mudar… Moral da história: o que o partido jamais havia conseguido fazer com a mãe, ela realizou com o filho.
Num país em forma de presunto, grassa a praga de um estilo peculiar de corrupção. Não se trata de roubar somente pela “mais-valia” ou pelo engodo do mercado e da ganância. Isso também ocorre no país de Jambom, mas aqui o que explode como bombinha de São João é algo paradoxal: o roubo desmedido dos dinheiros públicos realizado precisa e legalmente pelas autoridades eleitas para gerenciar esses recursos. Trata-se do assalto ao Estado pelos seus funcionários mais graduados que loteiam suas repartições em nome de uma antigovernabilidade, pois como governar com os escândalos e as suspeitas de enriquecimento ilícito de ministros? Quando eu era inocente e de esquerda, a nossa luta era contra o “feudalismo brasileiro” encarnado pelos “coronéis”. Com o PT veio a esperança de liquidar a corrupção. Afinal, eu testemunhei o então presidente do PT, José Genoino, repetir com orgulho: “O PT não rouba e não deixa roubar!”. Era, vejo bem hoje, apenas um belo mantra que se desfez no mensalão e no que se seguiu.
Moral da história: o que a “direita” jamais havia conseguido fazer no Brasil – coalizão, distribuição de favores, aparelhamento do Estado, elos imorais entre instituições e pessoas, populismo em nome dos pobres – a “esquerda”, acomodada no poder, institucionalizou.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 31/08/2011
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