Esquartejar pessoas pode ser uma forma imprópria e até deselegante de formar um tribunal, mas é compatível com a interpretação literal da Constituição brasileira. Segundo o artigo 107, os Tribunais Regionais Federais (TRFs) devem ser compostos de, “no mínimo, sete juízes”. Desse total, um quinto será escolhido dentre advogados “com mais de dez anos de efetiva atividade profissional”, etc. Segundo os especialistas em métodos quantitativos, um quinto de sete é 1,4. Logo, ou se despedaçam pessoas ou deve haver pelo menos dez juízes em cada TRF. Roberto Campos, membro da Constituinte, chamou a atenção para esse detalhe, mas o texto foi aprovado e se mantém até hoje. O bom senso de Campos foi ignorado nesse e em vários outros momentos. Em alguns casos, isso custou caro ao País. Ernesto Lozardo poderia ter lembrado o episódio da Constituinte em sua biografia do diplomata, economista, político, ministro do governo Castelo Branco e desbravador do caminho para o milagre econômico de 1968-1973, quando o Ministério da Fazenda foi ocupado por Antônio Delfim Netto. Lozardo é professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e acaba de deixar a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O planejador da recuperação e da reforma da economia brasileira a partir de 1964 foi um liberal – inicialmente um “neoliberal desenvolvimentista”, segundo a descrição de Lozardo. Num Brasil com tantas pessoas ostentando crachás de liberais e ao mesmo tempo defendendo posições de extrema direita, elogiando torturadores e tentando atribuir o Holocausto à esquerda, pode ser instrutivo rever ou conhecer o liberalismo de Roberto Campos. Essa biografia é particularmente interessante porque mostra duas dimensões de um pensamento liberal – seus aspectos teóricos e os problemas de sua aplicação a um projeto econômico ambicioso.
Roberto Campos assumiu o Ministério do Planejamento em abril de 1964, convidado pelo marechal Castelo Branco. Era urgente combater a inflação e consertar uma economia travada e desarrumada, mas o novo governo deveria também criar as condições para um retorno seguro ao crescimento. A política de estabilização foi então complementada com um conjunto notável de mudanças institucionais.
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A criação de um banco central foi parte de um grande conjunto de reformas: bancária, do mercado de capitais, fiscal, tributária e salarial. Era preciso eliminar décadas de atraso na conformação de uma economia capitalista. A construção de um sistema institucional moderno deveria aproximar o Brasil das formas de operação das economias de mercado mais avançadas. A descrição desse trabalho é um dos grandes momentos do livro de Ernesto Lozardo, um volume com título triunfal: OK, Roberto, Você Venceu!(Rio de Janeiro, Topbooks, 2018, 352 páginas).
Quando chegou ao Ministério do Planejamento Roberto Campos já era uma figura pública e um tanto polêmica. Havia sido embaixador nos Estados Unidos, depois de ter passado por outros postos diplomáticos. Como economista, havia ocupado posições importantes, como a direção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, futuro BNDES), fundado em 1953, e participado de grupos de planejamento.
Lozardo descreve extensamente, em várias passagens, os grandes debates sobre desenvolvimento econômico nos anos 1950 e 1960. Na América Latina, a discussão foi dominada por estruturalistas, ligados à Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), e pelos chamados monetaristas. Essa controvérsia foi muito além dos ambientes acadêmicos e tornou-se um grande tema político.
Roberto Campos foi sempre, ou quase sempre, oposto às teses cepalinas. Foi contrário à expansão do gasto público e da inflação como instrumentos de crescimento e de transformação da economia. Opôs-se à política de industrialização voltada essencialmente para a substituição de importações e para o suprimento interno. Propôs o recurso ao investimento estrangeiro para complementar a escassa poupança nacional, facilitar transferência de tecnologia e preparar o País para exportar bens de maior valor agregado. Além disso, defendeu formação de capital humano, pela educação, como parte da estratégia de desenvolvimento. Ideias como essas nortearam o desenvolvimento da Coreia do Sul a partir dos anos 1970. Antes de mudar sua política, coreanos visitaram o Brasil para conhecer as propostas de Campos, lembra Lozardo.
A política econômica, segundo o livro, mudou de rumo a partir do governo Geisel, com mais intervencionismo e mais protecionismo. A década perdida (anos 1980) foi consequência dessa mudança, afirma o autor.
Se buscar mais informação histórica sobre o período entre os anos 1950 e 1990, o leitor poderá entender e avaliar mais facilmente a narrativa e as opiniões de Lozardo. Exemplo: a noção de um corte na política econômica a partir do governo Geisel pode ser sustentável, mas vale a pena, para uma visão mais ampla, considerar o sentido das novas metas. Havia um vínculo entre a substituição de importações de bens de capital e de insumos básicos e as dificuldades do balanço de pagamentos.
Outro detalhe: Lozardo menciona a trajetória de Roberto Campos até a conformação final de seu liberalismo, mais próximo daquele proposto por Friedrich Hayek. Valeria explorar mais esse ponto. Quem acompanhou a história ao vivo pode falar de aprendizado e mudança ao longo dessas décadas. Exemplo: nos anos 1960 e 1970 muitos liberais admitiam a intervenção nos preços e salários para corrigir “imperfeições” do mercado. Campos e Mário Henrique Simonsen pertenceram a esse time. A relação entre teoria e prática tem duas mãos. Isso é especialmente claro no caso de quem, como Roberto Campos, esteve por longo tempo na linha de frente da política econômica.
Campos foi, enfim, um exemplo de refinamento intelectual, de bom humor, de civilidade no debate e do ceticismo tão comum entre os liberais. Tendo sido seminarista, nunca foi, na vida pública, um pregador de verdades absolutas. Seria, hoje, um tipo meio estranho em Brasília.
Fonte: “Estadão”, 14/04/2019