Desde que o mundo é mundo, um dos passatempos favoritos da espécie humana é se juntar em pequenas multidões e agredir algum indivíduo que tenha cometido algum delito (real ou imaginário) que o torne impuro e indigno de viver na sociedade. Hoje em dia, com as redes sociais, é possível participar desse prazer sem de fato apedrejar e matar a pessoa, restringindo-se aos possíveis danos psicológicos do ostracismo social. É o linchamento virtual.
Quando feito por pessoas que se consideram progressistas, o linchamento recebe o nome de “cancelamento”. Como quase tudo no meio progressista brasileiro, isso é cópia de uma moda da cultura pop norte-americana. Uma pessoa famosa ou semifamosa é pega falando algo que fere a moral vigente —por exemplo, alguma atitude que possa ser interpretada como preconceituosa—; uma multidão de seguidores decide que aquele deslize a desqualifica como formadora de opinião/artista pop, e passam a atacá-la nas redes, sugerindo que todos deixem de segui-la.
Do ponto de vista de um usuário qualquer, apenas deixar uma ofensa ou deboche na página alheia é um ato pontual e de pouca importância. Do ponto de vista do alvo do ataque, que recebe dezenas de milhares de mensagens parecidas —com variado grau de falta de educação— pode ser uma experiência traumatizante.
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Hoje em dia, julgamos uma pessoa pela pureza ideológica de suas crenças. Desviar um milímetro da ortodoxia aceita no pensamento ou no modo de falar é visto como revelando uma séria falha de caráter. É uma superstição. Acreditar-se um pessoa melhor por acreditar em A ou B e defender esse valor em brigas de ego nas redes sociais é equivalente às pessoas que, no passado ou no presente, se julgam superiores às outras por seguirem uma religião qualquer.
Na verdade, o que distingue as pessoas em termos éticos não é a opinião que cada um traz em sua cabeça; é a maneira como como tratam o seu semelhante, sua capacidade de controlar seus desejos imediatos em nome do bem-estar alheio, a generosidade para com aqueles de quem não se espera favores, a honestidade e boa-fé em suas relações, a profundidade e franqueza com que pensam e discutem.
Claro que, por esses critérios, um jovem adulto que xinga outro nas redes sociais por algum deslize de fala ou de opinião ocupa os degraus inferiores da escala moral. Não é o amor pela justiça, e sim a hipocrisia (afinal, todo mundo comete deslizes o tempo todo) e talvez uma certa inveja que leva alguém a se juntar a uma multidão de linchadores.
Ainda bem que a tal “cultura do cancelamento” também parece não ser muito eficaz. Há riscos reais: uma empresa pode ser intimidada a demitir um funcionário injustamente, ou familiares e entes queridos podem ser importunados.
Mas, conforme as ondas de indignação vão se tornando mais frequentes, mudando cada vez mais rápido de foco para cada novo “absurdo” dito na rede social, e conforme a sociedade vai entendendo melhor seu comportamento injusto e seletivo, o “cancelamento” fica mais impotente. Três dias depois, o alvo da patrulha —se é que conseguiu preservar sua dignidade e não se dobrou perante a turba— em geral tem mais seguidores do que originalmente, e o ódio já passou. A cultura do cancelamento mostra-se um exercício de vaidade de uma geração que acredita que a militância em redes sociais lhe confere algum tipo de traço admirável.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 18/2/2020