Seria de uma pretensão sem tamanho imaginar que o Brasil inventou a malversação, ou uma nova forma de capitalismo acinzentado. Temos nossas contribuições, é verdade, mas não se pode perder de vista que estamos diante de um dos grandes temas de nosso tempo, quem sabe uma epidemia global, todavia, já plenamente identificada na literatura especializada, sobre a qual vale se debruçar para melhor entender o que se passa conosco.
A palavra “cronismo” não existe em português, mas temo que em pouco tempo será um desses neologismos que aborrecem o Senador Aldo Rebelo e que, não obstante, adornam e enriquecem o idioma.
A palavra “crony” surge na Inglaterra no século XVII, vinda do grego “khronios” (nesse caso, um estrangeirismo isento de tributação), significando “de longa duração”, e progressivamente se tornou uma gíria para designar amigos, afilhados, capangas, comparsas, apaniguados, membros de uma quadrilha ou irmãos no crime.
[su_quote]Não há predominância dos mercados, senão na aparência, mas um “controle social” das transações e mercantilização da ação do Estado[/su_quote]
A referência ao “cronismo”, e mais ainda a um capitalismo “crony”, de ampla utilização na literatura econômica e sociológica, é bem mais recente e cresceu em alusão a regimes onde as formas de organização das trocas econômicas são tais que pouca coisa importante pode ocorrer sem alguma forma de favoritismo, arbitrariedade ou corrupção. Não há predominância dos mercados, senão na aparência, mas um “controle social” das transações e mercantilização da ação do Estado.
A primeira onda de estudos sobre “cronismo” veio com a crise da Ásia e com a percepção que este tinha sido o fator a desarrumar muitos dos países outrora designados como “tigres”, mas que tinham retroagido a políticas mais protecionistas, mercantilistas e amistosas demais a grandes grupos nacionais familiares.
Em seguida, e não por acidente, o “cronismo” se tornou um grande tema nos regimes que sucederam o socialismo na Rússia e na China, onde os velhos aparelhos repressivos se privatizaram em relações nebulosas com o governo formando uma espécie de capitalismo mais selvagem que os do Ocidente e particularmente afetado por esquemas pessoais, clientelismo, nepotismo e corrupção.
Depois de duas décadas do sepultamento do socialismo é certo dizer que esta nova forma de capitalismo dirigido, desregrado, exagerado e deturpado, onde existe um pântano envolvendo as relações entre o público e o privado, espalhou-se em muitos lugares, embora em variados graus, e ameaça a economia e a política através de ângulos inusitados.
É claro que os elementos constitutivos do “cronismo” sempre existiram – como as máfias, as bruxas, a corrupção e o favoritismo, para não falar dos inúmeros formatos para a alocação de recursos através de relações pessoais, seletivas, corporativas, familiares, relacionais e em oposição às relações de mercado.
O que é novo, entretanto, é a hegemonia do “cronismo” sobre os Estados nacionais, a ponto de estabelecer as agendas de políticas públicas e os andamentos maiores da economia, e pior, a “monetização” da intervenção do Estado. Esse capitalismo de quadrilhas, comparsas, gangues, máfias, laços ou companheiros, assume variadas vestimentas ideológicas, conforme o contexto, meros disfarces, sua lógica é simples: a pilhagem.
Sem conhecer o Brasil, esteve aqui faz duas semanas o professor Luigi Zingales (da Universidade de Chicago), com o propósito de lançar seu novo livro (intitulado “Capitalismo para o povo”), onde estabelece uma disjuntiva que procura explicar os modelos econômicos que se organizaram depois da Queda do Muro. Seu foco reside sobre a natureza do relacionamento entre o público e o privado, onde ele distingue dois regimes ideais, os que designa como “pró-negócio” e os “pró-mercado”.
“Pró-negócio” é o regime do “cronismo”, onde o público e o privado se embaralham, mais ou menos como na velha boutade entre Bernard Shaw e a bela bailarina que lhe propôs um filho com a beleza dela e a inteligência dele. Pois os regimes “pró-negócio” são aqueles onde os objetivos são os privados e a eficiência é a pública, o pior dos dois mundos, a verdadeira pirataria.
O regime “pró-negócio” está longe de ser anticapitalista. Talvez se possa dizer o exato oposto: é a privatização do Estado e o capitalismo degenerado.
O regime “pró-mercado” é fundado na competição e na impessoalidade, o velho capitalismo, como a democracia, o melhor de todos os regimes ruins. Não se trata de Estado mínimo, nem de qualquer visão romântica sobre o modo como o capitalismo funciona. Mas de trabalhar as virtudes do sistema, que deve enfatizar a democracia e a horizontalidade, enquanto o “cronismo” procura sempre a seletividade e a arbitrariedade. Em vez de competição, meritocracia e impessoalidade, o regime do “cronismo” estabelece a discricionariedade para escolher seus “campeões” com bases em prioridades ad hoc e, às vezes, buscando apoio no nacionalismo ou no politicamente correto.
É claro que Singales fala de coisas familiares: a oposição entre seus dois regimes se sobrepõe a antigos dilemas nossos, por exemplo, entre a casa e a rua (do antropólogo Roberto Da Matta), ou entre o patrimonialismo e o mercado, entre o nepotismo e o concurso, o favoritismo e a licitação, os campeões nacionais e as empresas comuns.
O “cronismo” desembarcou no Brasil pelas mãos do PT, que, em 2008, passa de uma postura passiva e envergonhada para outra de extroversão, onde parecia atacar cada um dos pressupostos dos consensos internacionais em políticas públicas. Na ocasião, o ministro Guido Mantega proclamou: “O capitalismo precisa ser sempre reinventado. Onde está dando mais certo? Nos países que adotaram o capitalismo de Estado”.
E lá fomos nós procurando ser “chineses”, ou ganhar o Nobel em economia, através de várias “opções estratégicas”, como as escolhas para o petróleo, e mais genericamente em todas as frentes de políticas públicas onde se buscou confrontar as soluções de mercado pois, segundo se dizia, o “capitalismo não regulado” havia fracassado no mundo inteiro.
Seis anos e muitos escândalos depois, passando por prejuízos bilionários, heterodoxias, pedaladas, e outras tantas coisas horríveis que cabem muito bem dentro do figurino internacional do “cronismo”, é bastante claro que essa nova matriz não apenas fracassou no tocante ao desempenho da economia, como desandou em um oceano de irregularidades e crimes.
É um fracasso histórico da maior importância, e que traz, como boa notícia, a demonstração que o Brasil possui anticorpos poderosos contra o “cronismo” (nos órgãos de controle, no Judiciário e na mídia).
Fará muito bem ao país identificar e punir os crimes cometidos, bem como reforçar instituições que evitem que ideias extravagantes sobre a economia tornem o Brasil mais vulnerável ao “cronismo”.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 28/6/2015
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