Com o início da Copa do Mundo na próxima semana, teremos uma boa oportunidade para tentar refletir sobre o que faz do futebol o futebol.
Podem-se imaginar duas narrativas para explicar por que, entre tantos esportes, o futebol acabou prevalecendo como o mais popular por larga margem.
A primeira narrativa enfatiza os fundamentos. Há algo de intrinsecamente melhor no futebol que justifique o fato de o esporte ter caído no gosto popular. A segunda assevera que pode simplesmente ter ocorrido uma sucessão de acasos que fez que várias pessoas gostassem do futebol. Uma vez tendo sido criada uma vantagem inicial, ela se realimenta automaticamente.
No primeiro caso, temos um único equilíbrio de longo prazo, e qualquer processo evolutivo teria “descoberto” algo com formato muito próximo ao do futebol. No segundo, há múltiplas (quiçá infinitas) possibilidades e o processo histórico específico teria selecionado o esporte. A escolha teria sido quase por acaso.
Não tenho condição de responder à questão anterior, mas certamente a facilidade do esporte –demandar poucos recursos para sua prática– e a flexibilidade –poder ser jogado em diversos locais com grupos diversos de pessoas– devem ter facilitado a difusão.
Além da praticidade e da flexibilidade, parece-me que o esporte apresenta seis características únicas que talvez sejam, de alguma forma, os fundamentos da sua superioridade.
A primeira é que se trata de um esporte com um erro de design. O pé é muito menos habilidoso do que as mãos. É perfeitamente natural que houvesse pressão para permitir o uso das mãos. Ela de fato existiu e gerou o rúgbi como variação do futebol.
A segunda é que é um esporte no qual não há um tipo físico óbvio. Há jogadores altos e baixos, mais ou menos robustos, rápidos e mais lentos etc. O jogo tem tal complexidade de movimentos e possibilidades de funções que acomoda grande diversidade de tipos físicos.
Evidentemente há que ser talentoso. E nesse aspecto é possível que seja tão injusto como qualquer outro esporte. Friso somente que o talento no futebol não se vincula a um tipo físico.
A terceira é que é um esporte de placar baixo, no qual o empate é um resultado perfeitamente natural. Para os aficionados do futebol, uma vitória de 100 a 102 do basquete não faz sentido. O problema é que placares muito elevados tornam muitas vezes a distância entre vitória, empate e derrota muito pequena
A quarta característica é que é muito difícil descrever a situação do jogo por meio de estatísticas. Com alguma frequência ocorre de um time jogar melhor do que outro, todos que assistem ao jogo reconhecem este fato, mas qualquer estatística –tempo de domínio de bola, chutes ao gol, escanteios conquistados, desarmes etc.– sugere o contrário. Teria que haver um critério relativamente transparente de caracterizar jogada perigosa, o que é possível, mas nada fácil.
A quinta característica é que às vezes –bem menos do que se imagina– os fundamentos não prevalecem e o time que está jogando pior vence. Trata-se de uma consequência de ser jogo de placar baixo.
Finalmente, por ser um esporte de contato jogado com o pouco habilidoso pé, a falta é natural do jogo. Se houver vedação muito estrita à falta, o jogo ficará muito chato. A maneira de solucionar esse dilema foi adotar regras de punição não muito lineares. Há uma dimensão temporal e outra espacial na não linearidade.
Ao reincidir nas faltas, o jogador constrói (ou melhor, destrói) sua reputação. Da conversa e do cartão amarelo para o vermelho há forte descontinuidade na punição. Essa é dimensão temporal da não linearidade.
Por ser praticado com o pé, a defesa tem vantagem sobre o ataque. É difícil construir e fácil destruir. Se o time conseguiu construir uma jogada e levar a bola até a área adversária, já fez demais. Praticamente marcou um gol. A falta na área é punida com o pênalti. Essa é a dimensão espacial da não linearidade.
Parece-me que somente o futebol tem esse conjunto singular de características. É possível que a popularidade seja fruto dos fundamentos.
Fonte: Folha de S.Paulo, 08/06/2014.
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