Senhor Raul Castro,
Permita-me escrever-lhe em tom pessoal, dirigindo-me ao homem, não ao dirigente, inclusive porque cartas são eminentemente pessoais, por definição. O tema, porém – daí a razão de minha carta ser totalmente aberta – é de interesse geral: a situação em Cuba, ou, segundo suas palavras, a continuidade do socialismo em Cuba, algo que, supostamente, deveria interessar exclusivamente ao povo cubano e seus lideres, posto que, em toda a América Latina, esse tipo de sistema econômico existe apenas e tão somente em Cuba (por enquanto, acreditam alguns).
Mas ele me interessa também, como pesquisador em história e curioso em temas de economia. Eis rapidamente o que sou: apenas um pesquisador das coisas da história e um observador das realidades econômicas do planeta, e apenas isto me impele a escrever-lhe, ademais de um motivo puramente circunstancial. O motivo é a sua qualidade de futurólogo, ou visionário do socialismo cubano, que pretendo comentar, como explico a seguir.
Li recentemente na imprensa internacional que, ao decretar a suspensão do próximo Congresso do Partido Comunista Cubano – que não se reúne há pelo menos doze anos –, em razão das atuais dificuldades econômicas, o Senhor declarou que Cuba permaneceria socialista mesmo depois da morte de seus líderes revolucionários. Li sobre o assunto no The Guardian, um dos melhores jornais ingleses – e bem mais diversificado do que o seu Gramna, reconheçamos – em matéria assinada por Mark Tran: “Cuba will stay socialist, insists Raul Castro” (2 de agosto de 2009; link: http://www.guardian.co.uk/world/2009/aug/02/raul-castro-us-cuba ).
Bem, lamento pelos desastres econômicos trazidos pelos recentes tufões que devastaram a sua ilha, mas, quanto à sobrevivência do socialismo, eu não teria a mesma certeza do Senhor, por diversos motivos históricos, ou simplesmente comparativos. Façamos um petit tour do mundo nesse quesito.
Quantos países verdadeiramente socialistas existem hoje no mundo?
Além de Cuba, que continua a se proclamar como tal, vejo a Coréia do Norte e… depois, confesso que não vejo muitos mais.
O Senhor acha, sinceramente, que a China, que afirma ser um “socialismo de mercado”, é realmente um país socialista irmão? Acredito que o Senhor já saiba que mais de 80 por cento da produção agregada chinesa, atualmente, é formada no setor privado. O Vietnã ainda não chegou a essa proporção de economia de mercado, mas dela se aproxima rapidamente, como um dos mais recentes convertidos do planeta.
O Senhor acredita, por outro lado que a Venezuela seja socialista, com toda aquela retórica a favor do ‘socialismo do século 21’? Existem fundadas dúvidas a respeito: a despeito dos esforços do seu atual presidente, não creio que se possa classificar a Venezuela como formalmente socialista, mesmo considerando-se o peso enorme do setor estatal na sua economia atualmente, mas isto se deve – e acredito que o Senhor saiba – ao peso desproporcional do petróleo na economia venezuelana.
Olhando retrospectivamente, o que tivemos, nas últimas décadas, vinte e poucos anos para grande parte dos países envolvidos, foi um processo acelerado de transição do socialismo para o capitalismo, quaisquer que sejam os julgamentos que se possa fazer sobre a qualidade e o ritmo dessa transição em alguns deles. O fato, porém, inegável é que TODOS, não preciso insistir, todos os países da Europa central e oriental que, num determinado momento, tinham “optado” pelo socialismo, fizeram o caminho inverso desde os anos 1990. A China, aliás, já tinha começado uma década antes sua transição para um “socialismo de mercado” e consolidou, recentemente, o princípio da propriedade privada em sua Constituição.
Ora, o que distingue o socialismo do capitalismo, segundo Marx e Engels (e Lênin, também, não esqueçamos), é a propriedade coletiva dos meios de produção. Portanto, ao optar pelo exato contrário, a China já não poderia mais ser considerada socialista, não é mesmo? Tenho a mais firme convicção de que o Vietnã segue pelo mesmo caminho…
Pois bem, ouso perguntar, por que o Senhor acha que Cuba vai permanecer socialista após o desaparecimento dos líderes comunistas, como o Senhor e o seu irmão Fidel? De onde vem essa sua confiança na sobrevivência de um sistema que já entrou na lista das espécies ameaçadas de extinção?
Se retrocedermos na história, veremos que a decisão de converter a ilha de Cuba num país socialista não foi tomada democraticamente pelo povo cubano num processo eleitoral aberto, com base em campanha pedagógica que confrontasse o povo cubano com essa simples questão: vocês desejam que Cuba se torne socialista? Aliás, poucos povos, entregues à vertigem de um processo revolucionário, dispõem da oportunidade de debater livremente sobre escolhas tão fundamentais como essa: a definição de um inteiro sistema econômico, em tudo e por tudo oposto ao que vigorava até então na sua ilha. Processos revolucionários em geral tendem a tragar seus primeiros lideres idealistas e os belos sonhos de um futuro radiante, para adentrar mais adiante na rotinização do carisma e na burocratização dos procedimentos correntes quanto à organização econômica, social e política. Cuba não é exceção.
Se estou lembrado, a decisão foi tomada monocraticamente, num belo dia de 1961, quando Fidel Castro – inconfortável com as pressões do imperialismo americano e seduzido pelas promessas de ajuda soviética – declarou em praça pública que, desde aquele momento, Cuba se convertia ao marxismo-leninismo. Vocês passaram, então, a construir o que se chama de socialismo, na verdade uma mistura de estatização ao estilo da União Soviética com algumas pitadas de rum. Depois do insucesso dos primeiros experimentos guevaristas com o “homem novo” e o frustrado projeto de industrialização pesada, a ilha voltou ao velho contrapunteo cubano del tabaco y del azucar (copyright Fernando Ortiz).
Não tenho certeza de que o processo tenha sido especialmente exitoso, pois, como o Senhor deve saber, a produção estagnou ou recuou em diversos setores, como atestam todas as estatísticas disponíveis. Paulatinamente, dezenas, centenas de milhares de cubanos foram deixando a ilha – os que puderam, pelo menos – para viver em outros países: não creio que o tenham feito unicamente por discordarem do estilo cubano de marxismo-leninismo, muito temperado, é verdade, pela personalidade especialíssima do seu irmão Fidel, mas acredito que simplesmente por razões de bem-estar econômico e de liberdade política, duas mercadorias raras na ilha.
Esta é uma constatação que faço, com base em todas as experiências precedentes de socialismo, em todos os países aos quais foi dada a oportunidade à população de se manifestar livremente. Muitas pessoas votaram com os pés, como os alemães orientais e os europeus do leste e do centro do continente, durante todos os anos da experiência socialista ali registrada. Hoje, muitos emigram livremente, geralmente por razões econômicas, mas eles são totalmente livres para fazê-lo, assim como para voltar quando quiserem.
Creio que não é o caso da ilha que o Senhor dirige agora, na sucessão do seu irmão doente, a quem formulo meus sinceros votos de pleno restabelecimento.
Permito-me, neste ponto da carta, expressar-lhe um simples desejo pessoal, que acredito o Senhor não cumprirá, mas que fica, ainda assim, como sugestão. Ela é feita, Senhor Castro, não por um capricho meu, nem por qualquer orientação política, mas com base unicamente na observação da história.
Minha sugestão, Senhor Raul Castro, é a de que, numa próxima oportunidade, o senhor possa fazer uma proclamação ao seu povo, em termos mais ou menos similares ao do texto que lhe proponho a seguir:
“Meus caros compatriotas, irmãos cubanos,
Gostaria, antes de meu desaparecimento físico, lhes anunciar algo muito importante, mas, antes de tudo, lhes pedir desculpas pelo que eu e meu irmão fizemos nestes últimos cinquenta anos.
Nós, como muitos outros companheiros de luta contra a injustiça, a opressão e a miséria, lutamos abnegadamente para libertar a nação de uma ditadura e para criar um novo sistema econômico e político nesta ilha. Lutamos contra a ditadura de Batista para criar uma democracia popular, fazer a reforma agrária e mudar o perfil de nosso povo, para lhe dar mais prosperidade, mais igualdade, mais liberdade.
Acreditamos – e conosco muitos companheiros socialistas pelo mundo afora – que o socialismo fosse o sistema ideal para o nosso país, assim como para outros, pois acreditamos – mas nisso nos equivocamos redondamente – que o capitalismo fosse a fonte de todas as misérias humanas e sociais.
Pois bem, caros compatriotas: nós estávamos errados, assim como todos os demais companheiros que tentaram criar o socialismo em seus países, e só conseguiram instalar um regime de penúria, de opressão e de injustiças, sem qualquer liberdade política, sem partidos livres, sem escolha democrática de nossos dirigentes.
Foi errado, e eu, humildemente, o reconheço formalmente neste dia.
Companheiros de partido,
Vamos dar início a um processo ordenado de volta ao capitalismo e à democracia, sem maiores traumas, do que aqueles que já causamos em cinco décadas de tentativas frustradas.
O socialismo fracassou, e temos a humildade de reconhecer este fato. Antes de causarmos ainda mais sofrimento ao nosso povo, vamos organizar essa transição da melhor forma possível, sem retaliações, sem maiores traumas para o nosso povo.
Meus caros compatriotas e irmãos cubanos,
Desde agora proclamo a ilha aberta a todos os compatriotas que a deixaram no passado. Vamos convocar eleições livres para uma Constituinte e esta Constituinte vai elaborar uma nova Carta para o nosso povo, declarando, simplesmente, que Cuba é uma república democrática pluralista, adepta da livre iniciativa e de um sistema econômico de mercado.
Os detalhes eu deixarei para depois, mas é isto que eu pretendia proclamar a vocês neste dia, e pedir-lhes sinceras desculpas por todo o sofrimento que nossa crença ingênua no socialismo já provocou em Cuba.
Desde agora aspiramos a ser um país normal.
Ao mesmo tempo faço um apelo a todos aqueles que estão tentando criar um ‘socialismo do século 21’, em outras partes, a que não façam isso: os exemplos de Cuba e da Coréia do Norte já deveriam bastar para demonstrar amplamente que não vai dar certo, nunca deu certo, e não existe nenhuma possibilidade que dê certo. Por favor, não tentem, fiquem com o velho e duro capitalismo, corrigindo suas iniquidades naturais de maneira democrática, por reformas graduais que distribuam os recursos e as rendas de maneira equitativa, sem porém desestimular a iniciativa privada.
Creio que a mensagem que eu queria lhes trazer é esta, caros compatriotas e companheiros. Daqui para a frente, tudo vai ser diferente.
Eu, e meu irmão, aspiramos tão somente a uma aposentadoria decente, sem maiores privilégios e diferenças em relação à média dos cubanos. Espero retirar-me com a consciência tranquila, de que fiz o melhor possível para o meu povo.
Raul Castro”
Pois bem, Senhor Raul Castro, esta é apenas uma sugestão de proclamação solene. Pode mudar os detalhes, mas creio que o essencial está dito.
Acredito, pessoalmente, que o Senhor se sentirá bem melhor depois de ter feito esse discurso, aliviado, eu diria, pois o contrário disso representaria prolongar o sofrimento do povo cubano, que não merece mais nenhum ano, nenhum mês de socialismo.
A falta em fazê-lo vai simplesmente significar que a transição, após a sua morte – desculpe-me por ser tão rude e aparentemente de mau agouro, mas isso acontece com todos nós –, poderá ser caótica, com muitos conflitos, destruição, vinganças e maiores sofrimentos para o povo cubano.
Faça isso e passe à História como um socialista diferente: um sinceramente arrependido pelas bobagens que cometeu, e alguém comprometido com o bem estar de seu povo, acima de quaisquer ideologias e idéias malucas.
Em 1990, após a queda do muro de Berlim, li texto semelhante, de famoso cientista político, afirmando e garantindo que o fim do socialismo em Cuba estava com os DIAS contados…já se vão quase 20 longos anos, mais precisamente quase 7.300 dias (sem considerar os anos bissextos do período).
Como diz o poeta: “Olha aí meu bem, prudência e dinheiro no bolso, canja de galinha nào faz mal a ninguém” (Jorge Ben).
O problema não é que o socialismo não tem futuro.
O problema é que o novo homem ainda não foi
construído.
20 longos anos… longuissimos anos…
Aonde é que isto deve ser comemorado???
O socialismo é um cadaver insepulto e o “coma andante” é a sua provecta encarnação