A cavalgadura de vinte e oito patas, figura definitiva e definidora criada por Nelson Rodrigues, salta da memória e exibe-se gloriosa e rampante quando se ouve uma fala sobre as patas mancas da economia. Em seguida, apruma-se e galopa, estrepitosa, quando o discurso resvala para a teoria da inflação do airbag e do freio ABS. A alguns a evocação da imagem rodriguiana parecerá estranha. A outros, luminosa. Não vale a pena tentar explicá-la, justificá-la ou associá-la a qualquer figura do mundo real. Cada qual a entenderá à sua maneira. Muito mais difícil é traduzir e dar expressão racional ao discurso econômico do ministro da Fazenda, Guido Mantega, e às orientações de sua chefe, a presidente Dilma Rousseff.
O primeiro mistério, a história das pernas mancas, foi decifrado facilmente. Incapaz de aprender com os próprios erros, o ministro da Fazenda continua apostando no estímulo ao consumo para dinamizar a economia brasileira. Três anos de fracasso dessa política parecem não ter produzido nenhum ensinamento. Além disso, ele insiste em atribuir a inflação a choques internacionais de oferta. Mas as cotações já se acomodaram e a alta de preços persiste no mercado interno. Enfim, o ministro combina a imaginária escassez de consumo com a crise externa para explicar por que a produção do País cresce menos do que poderia. Em sua cabeça, o potencial brasileiro de crescimento parece bem maior do que o estimado por economistas nacionais e de fora.
O segundo mistério é mais complicado, porque envolve uma estranha teoria da inflação. Segundo o ministro, a inclusão obrigatória de airbags duplos e freios ABS nos carros novos, em 2014, deverá elevar os custos e produzir efeitos inflacionários. Por isso o governo decidiu repensar o assunto, segundo informou na quinta-feira. A questão foi discutida horas depois em programa de entrevistas na Globo News. Um professor de engenharia criticou a hesitação do ministro e insistiu na prioridade à segurança. Um economista especializado em indústria automobilística estimou rapidamente o efeito do aumento de custo no índice de inflação. O impacto, segundo sua conta, seria minúsculo, algo da ordem de 0,1% em um ano.
Os dois argumentos são respeitáveis, mas deixam de lado pelo menos três questões especialmente relevantes. Em primeiro lugar, o custo de produção de um setor pode aumentar sem se converter, necessariamente, em nova pressão inflacionária. Se alegações como a do ministro fossem levadas a sério, carruagem e bonde puxado a burro ainda seriam as formas principais de transporte urbano. Que governo teria apoiado a indústria aeronáutica nascente, ou investido na substituição de velhas e baratas latrinas por sistemas complexos e caros de saneamento?
Elevações de custo podem, sim, ter consequências inflacionárias, mas isso depende de condições favoráveis ao repasse e à difusão dos aumentos de preços. Além do mais, o custo adicional gerado por melhoras tecnológicas tende a ser absorvido e diluído quando há suficiente concorrência.
Isso remete à questão seguinte. Além de beneficiada em vários momentos por incentivos fiscais generosos, a indústria automobilística tem sido pouco pressionada, de modo geral, pela concorrência estrangeira. Essa é uma das explicações do baixo padrão de segurança apontado por especialistas internacionais, quando examinam os carros produzidos no Brasil. Se os fabricantes puderem manter alguns modelos sem os airbags duplos e os freios ABS por mais algum tempo, serão os principais beneficiários da decisão oficial. A alegada vantagem para os consumidores – o preço sem aumento – será infinitamente menor que a desvantagem de continuar sem condições razoáveis de segurança.
A real preocupação do ministro, quando fala sobre a alta de preços, é a próxima interrogação, mas esse ponto é muito menos complicado. Ele continua, tudo indica, mais empenhado em administrar os indicadores do que em combater a inflação.
Não se diferencia, quanto a esse ponto, de sua chefe. Ela pode tê-lo censurado pela declaração perigosa, ou, no mínimo, precipitada, sobre os airbags e os freios ABS. Também o censurou, segundo informaram os grandes jornais, pela referência às duas pernas mancas da economia.
Declarações impensadas podem prejudicar a imagem do governo, dificultar a recuperação de credibilidade e aumentar o risco de rebaixamento da nota de crédito do País. Mas os dois, a presidente e o ministro, continuam demonstrando muito mais preocupação com os problemas de imagem do que com os fundamentos da economia. Isso inclui, para começar, as contas públicas e as pressões inflacionárias.
Qual o superávit primário para garantir em 2014 o pagamento de uma fatia razoável dos juros e pelo menos a estabilização da dívida? Bastaria o equivalente a 1,8% do produto interno bruto (PIB), segundo alguns analistas. Outros poderiam recomendar um alvo mais ambicioso. Mas a presidente, informa-se em Brasília, cobra da equipe econômica um objetivo realizável sem muita complicação e, portanto, sem risco de tropeço. Qual será a meta exequível num ano de eleição e, portanto, de muita pressão para gastança, concessão de benefícios fiscais e muito favor a governadores aliados?
Quanto à inflação, o ministro da Fazenda tem apontado como grande vitória uma taxa de 5,77% acumulada nos 12 meses até novembro, menor, portanto, que a de janeiro a dezembro do ano passado, 5,84%. Em outras palavras, qualquer resultado até 5,83% será apontado como um sinal de estabilização dos preços. Será uma avaliação compatível com a tese da inflação do airbag e com a imagem das patas mancas.
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