“Através de toda Europa indagou-se, em 1945 e 1946: pode-se governar com os comunistas? Em 1947, sem eles? Em 1948, pergunta-se: como governar contra eles?”
O dilema envolvido em como governar em um quadro em que a presença de um partido ou bloco rival tem forte poder estratégico —e não pode ser ignorado— foi identificado com acuidade por Raymond Aron, nas suas “Memórias”.
A analogia serve como ponto de partida para a discussão do papel do PMDB —e no atual governo, do centrão— no cálculo estratégico dos presidentes. Embora o termo tenha sido usado no governo Sarney para uma facção do partido, seu uso atual para designar um bloco é sugestivo: deve-se a um padrão de fragmentação partidária, nunca visto em democracias —há dez partidos com 28 (5,4% do total) a 41 (7,9%) cadeiras na Câmara dos Deputados. Mas o conceito é sem dúvida analiticamente pobre.
Sob Bolsonaro a sequência de Aron inverte-se: em 2019, governava-se contra o centrão. Ele fez campanha e iniciou sua gestão sob a consigna da rejeição da velha política; seu ministro da Justiça simbolizava a luta contra a corrupção.
Em 2020, governa-se com o centrão, ou pelo menos buscou-se aproximação com ele. O governo perguntou-se: pode-se governar sem o centrão? Mas o “leitmotif” não foi a formação de maiorias positivas para aprovação de iniciativas do Executivo, mas de maioria negativa; um escudo legislativo contra o impeachment, o qual entrara na agenda com a crise desatada pela denúncia de Moro. Sua saída e a aproximação com o centrão são faces da mesma moeda: ela é precondição daquela. Não é à toa que acontecem ao mesmo tempo.
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A mobilização e a coordenação de maiorias governativas não têm sido problema para o governo. Na seara da economia há maioria congressual que garante a aprovação da agenda. O padrão é um presidencialismo de delegação: a pauta será aprovada a despeito da inação ou protagonismo envergonhado do governo.
Nas pautas comportamentais, o padrão é o confronto porque aqui não há maiorias. O governo ganha perdendo: derrotado no Congresso ou no STF beneficia-se da cacofonia gerada. E assim —com sucessivos focos e incêndios políticos “la nave va”— eis o equilíbrio que vinha garantindo a sobrevivência do governo.
Mas ela está sujeita a turbulências críticas quando o bolsonarismo raiz ataca o próprio STF ou cruza a linha vermelha violando a lei.
Pode-se governar com o centrão fraturado? Sim, o governo poderá prescindir de maiorias para reformas, mas ele poderá ser útil como escudo legislativo.
Mas um centrão-antagonista comandando a Câmara e detendo a chave do impeachment e de pautas bomba produz grande incerteza.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 3/8/2020