Um professor da prestigiada Wharton Business School submeteu sua prova final ao ChatGPT – o robô teria obtido um B ou B-. Outro professor da igualmente prestigiada IESE Business School usou a resposta dada pelo ChatGPT a uma tarefa de otimização como prova para seus alunos: eles deveriam identificar e corrigir os erros do robô. O
fato é que no mundo – e no Brasil – educadores nos diferentes níveis de ensino se inquietam com essa inovação, as manifestações até aqui vão do medo à mais incontida euforia. Até aqui poucos encaram o assunto com a prudência necessária.
Assim como a História, as lições do passado parecem surtir pouco efeito.
O chat veio para ficar. E como isso afeta a educação? O advento do ChatGPT e da inteligência artificial, de modo geral, questionam a função da educação e, mais especificamente, da escola. Dado o que o ChatGPT pode fazer – e poderá mais no futuro –, qual é o papel da escola? O que muda? O que resta para a escola ensinar?
A questão não é nova, apenas se coloca de forma diferente.
Há 100 anos, Edward Thorndike – um dos gigantes da psicologia científica – enfrentou a convicção prevalente a respeito do Latim e do xadrez. A voz corrente, ainda sustentada por alguns, era a de que a aprendizagem dessas disciplinas ajudaria o aluno a aprender outras disciplinas. Desde então os estudiosos da aprendizagem continuam tentando responder a essa pergunta de 1 milhão de dólares: do que aprendemos, o que transfere para novas aprendizagens?
Inovações como o Chat GTP nos obrigam a responder: o que vale a pena ensinar? E a resposta se encontra na pergunta feita por Thorndike – qual conhecimento ajuda a obter mais conhecimento?
Para responder a essa pergunta os psicólogos usam o termo “transferência de aprendizagem”. A transferência pode ser próxima ou distante. Por exemplo, se compreendemos bem uma página de um livro de ciências ou física esse é o maior preditor de que vamos compreender bem a página seguinte. No contexto da Teoria do Capital Humano e especialmente da formação profissional a pergunta clássica é: o que deve ensinar a escola, ou seja, o que é conhecimento geral, e portanto se transfere para novas aprendizagens e o que é específico à empresa, suas tecnologias e procedimentos?
No caso do Latim o do xadrez, Thorndike concluiu que a transferência era virtualmente inexistente – e uma tonelada de estudos subsequentes vem confirmando essa conclusão. O cerne da questão é a proximidade – um conhecimento ajuda a adquirir outro dependendo da proximidade. E essa definição não é trivial. Entender o que é proximidade num mapa de geografia não é necessariamente o mesmo que num mapa de história. A transferência de aprendizagem é tanto maior quando há elementos idênticos entre o que já aprendemos e o novo conhecimento.
E aqui voltamos ao ponto de partida: o currículo escolar. É esta a discussão importante diante de uma nova tecnologia como a do Chart-GTP.
Um currículo escolar robusto se baseia numa aposta a respeito de quais são os conhecimentos relevantes para a vida. Como o tempo na escola é relativamente reduzido face ao restante da vida, essas decisões são cruciais para o futuro das pessoas e dos países. Até aqui existem dois grandes consensos. Um deles se refere aos conhecimentos a serem adquiridos por todos – e que devem servir de base para o exercício da cidadania e de escolhas ao final de um determinado período escolar: parar de estudar, preparar-se para entrada no mercado de trabalho ou preparar-se para prosseguir estudos. A outra refere-se à forma de ensino: como as pessoas sempre precisarão continuar a aprender, também é necessário aprender a aprender.
É assunto de interesse de toda a sociedade. Mas não é assunto para ser tratado por amadores. E é nesse espírito que devemos entender as provocações que ora vêm da inteligência artificial. Antes dela vieram os computadores. Antes deles a televisão. Antes dela o rádio, e daí para trás. O cerne da questão é saber quais são os conhecimentos essenciais e como eles ajudam a obter novos conhecimentos sem nos deixar sucumbir
ao canto da sereia de novas tecnologias.
Vivemos num país de paupérrima tradição educacional, especialmente no que diz respeito à educação de qualidade. Como sociedade temos pouquíssimo conhecimento e experiência sobre esses temas. Pouquíssimos modelos de sucesso. A BNCC – Base Nacional Curricular Comum – é o documento ridiculamente mal concebido e mal estruturado e reflete isso.
Durante a pandemia houve muitos que acreditaram que se houvesse 4G ou 5G para todos o atraso escolar poderia ter sido evitado. A experiência dos países desenvolvidos deixou claro que esse não foi o caso. A escola pode ter graves problemas, mas ainda não encontramos substituto para ela. E parte do êxito da escola se baseia num currículo robusto, que provê aos indivíduos, especialmente às crianças e jovens, elementos para continuar a aprender. Ou seja, conhecimentos sólidos e capazes de ser transferidos a situações relativamente próximas que enfrentamos no mundo real, na formação profissional, nos desafios do quotidiano e que nos ajudam a continuar a aprender.
O brilhante e atuante neurocientista Stanislas Dehaene, em sua mais recente estada entre nós, deixou claro que a inteligência artificial, um dos temas de suas pesquisas, está longe do que conseguimos fazer com nossos bilhões de neurônios.
Qual a tarefa para o Brasil? As tecnologias educacionais e novas ideias e desafios como os apresentados pelo ChatGPT serão úteis se estimularem as autoridades e especialistas a olhar para as questões críticas que afligem a educação nacional. Sequer conseguimos alfabetizar todas as crianças no 1o ano do ensino fundamental ou que metade deles nessa faixa dominem as habilidades básicas de linguagem e matemática. Falta também estratégia adequada para a formação profissional em nível médio. Não precisamos da inteligência artificial para isso. Basta usar a natural. Mas é preciso usá-la.