O Podcast Rio Bravo entrevistou Christian Lohbauer, cientista político e membro do Grupo de Análise e Conjuntura Internacional da USP. Na entrevista, Lohbauer comenta as eleições na França, que, agora no segundo turno, colocam frente a frente os candidatos Emmanoel Macron, do movimento Em Marcha, e Marine Le Pen, do partido Frente Nacional. O entrevistado observa que a França vive um momento de forte instabilidade política em decorrência de uma conjunção de fatores, com destaque para baixa performance econômica dos países europeus de um modo geral. “Existe uma relação direta entre a disponibilidade do trabalho e o crescimento da popularidade de partidos mais radicais”, diz. Outro fator que explica a opção por uma agenda mais radical é o “déficit democrático”, ou a ideia de que as decisões de Bruxelas, sede do Parlamento Europeu, não estão vinculadas ao dia-a-dia do cidadão comum. Apesar de todos esses componentes, Christian Lohbauer descarta a vitória de Marine Le Pen, mas ressalta que, uma vez presidente, Emmanoel Macron terá de construir a maioria no parlamento para conseguir governar.
Rio Bravo – Depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, havia uma expectativa muito grande em relação às eleições europeias, começando pela Holanda, que aconteceu no mês de março, passando pela França, nesse último fim de semana, e por fim chegando à Alemanha, cujo processo eleitoral acontece no segundo semestre deste ano. Tomando como base os resultados até aqui, é possível afirmar que é baixa a possibilidade de a Europa não se voltar contra a União Europeia, por exemplo?
Christian Lohbauer – Eu tendo a crer que, apesar desse movimento e desse crescimento dos movimentos nacionalistas em todos os países, de alguma maneira mais acentuada ou menos, que é um movimento que já se identifica desde os anos 90 e tem uma relação direta com performance econômica dos países europeus. Quando se tem mais crise, mais desemprego, esses partidos tendem a crescer. Isso aconteceu em 93, 94, depois aconteceu no final da década de 90… Você vai notando que é curioso uma relação direta entre a disponibilidade do trabalho e o crescimento da popularidade de partidos mais radicais, geralmente de direita. Então o que está acontecendo agora, eu acho que é um momento extremado desse fenômeno. Quer dizer, uma crise crônica de performance econômica, uma crise também em relação do que se conhece na Europa como déficit democrático, uma ideia de que Bruxelas está muito distante do cidadão. Então, você tem crises nacionais, você tem definições burocráticas centralizadas em Bruxelas, que o cidadão não reconhece como ligadas à sua vida diária, e uma combinação de fatores somados ao que aconteceu na Inglaterra ou no Reino Unido, que foi o Brexit, você criou uma situação de enorme instabilidade e insegurança política. Como você já colocou também, teve a questão do Trump nos Estados Unidos… Então você tem um fenômeno que preocupa. Eu tendo a crer que ele não irá definir o futuro europeu, ele só vai marcar mais uma crise que é cíclica. Ou seja, o que aconteceu na Holanda assustou mas acabou não acontecendo, a direita acabou perdendo e hoje o primeiro ministro é de centro-direita, democrata. Na França, tudo leva a crer que Macron vai ser o presidente. Acho possibilidade nula de que os nacionalistas como a Le Pen consigam mudar o discurso a ponto de reverter o quadro atual. Ou seja, Macron, que é um homem de centro, que vem da esquerda mas tem um discurso mais tecnocrático, vai ser o presidente da França. Portanto, é um discurso reformador, mas pró União Europeia. E mesmo na Alemanha, ainda acho que as eleições são em setembro, mas ainda acho que a Merkel tem grande chance de continuar o seu pocesso, embora os social-democratas tenham aparecido com uma carta diferente aí, que é o Schulz, que não tem nada de nacionalista, pelo contrário, é um social-democrata, mas foi um burocrata da União Europeia, foi presidente do Parlamento Europeu. Seria curioso ver um governo mais centro-esquerda na Alemanha num período em que a Europa faz esse movimento de direita, embora o termo esteja um pouco desgastado.
Rio Bravo – Por que na Europa esse termo direita e esquerda está mais desgastado? Isso tem a ver por exemplo com o fato de os dois candidatos que mais chamaram a atenção na eleição da França, a extrema esquerda e extrema direita, terem esvaziado o centro?
Lohbauer – Você toca num ponto que é inédito nas eleições francesas, que é a primeira vez desde a Quinta República, desde 1958, que os dois grandes partidos, os Republicanos e os Socialistas, não chegaram sequer perto da possibilidade de disputar o segundo turno. O Filon, que ficou em terceiro lugar, foi praticamente deslocado do processo por um escândalo de característica muito banal. E esse processo é maior do que aconteceu na França. A gente está falando aqui de um descrédito com a política independente das clássicas divisões de direita e esquerda que também por sua vez são debatidas de uma maneira ainda muito atrasada, anacrônica. Existe um conceito que ainda se aplica quando se trata de direita e esquerda, é o conceito de Norberto Bobbio, que praticamente coloca a direita com aquele grupo pensante politicamente que acredita que o Estado tem que ser menos presente na vida do cidadão e o desenvolvimento social é mais consequência do desenvolvimento da ação dos indivíduos e dos grupos privados, e a esquerda como aquela política que acredita que o Estado tem que estar mais presente, ou então, Estados mais taxadores, mais preocupados com a construção social, o Estado social como provedor da base do desenvolvimento. Eu acho que esse é o único conceito que se aplica hoje, o que as pessoas querem é gestão pública, transparência, política voltada ao cidadão, coisa que não se vê nem na Europa. Isso é quase que um fenômeno mundial. Você está vendo um distanciamento da atividade política da vida do cidadão, e aí a reação é você ir para os extremos. Os termos que são usados de forma demagogica, como no caso europeu, a imigração, o desemprego causado pela imigração, enfim… Temas que se você for analisar não são temas que definem na base do desenvolvimento, acabam se transformando em temas que definem, sim, a vitória das autoridades públicas. É o que aconteceu nos Estados Unidos, o que aconteceu na Inglaterra, é assustador.
Rio Bravo – A propósito disso, em relação aos votos, essa eleição apresenta uma separação muito interessante. Campo e periferia, de um lado, votaram majoritariamente em Le Pen, ao passo que os moradores das cidades e os franceses que vivem no exterior escolheram Macron. É possível afirmar que com isso há um tipo de divisão no tocante ao sentimento dos franceses sobre a globalização e sobre a União Europeia?
Lohbauer – Muito interessante isso e dá para a gente extrapolar a França e fazer o mesmo raciocínio para Estado Unidos e Reino Unido. Nos Estados Unidos, o que se conhece como América Profunda, que é América do Centro, Texas, Middle West, e não o Leste e Oeste dos Estados Unidos. O que é centro são comunidades mais conservadoras. E o que é mais urbano, cosmopolita e mais liberal está nas costas dos Estados Unidos. E quem votou em Trump nos Estados Unidos foi justamente esse miolo americano. No Reino Unido o que aconteceu foi muito semelhante. No Brexit, quem definiu o jogo dos 52% não foi Londres nem os centros urbanos escoceses. Foi justamente uma borda mais rural em torno de Londres, de comunidades mais veteranas, com medo da modernidade, muito parecido com o que aconteceu nos Estados Unidos. E na França acho que é a mesma coisa. As comunidades periféricas no sentido mais rurais, vilarejos, se identificam rapidamente com o discurso virulento da direita, contra o imigrante, contra aquela França tradicional do campo, da multilateralidade ou multifuncionalidade da agricultura francesa nas suas origens, e o mundo moderno cosmopolita de Paris e dos grandes centros urbanos, mais próximos às zonas industriais, votou em Macron. É um fenômeno para se comparar e você vai ver que o medo da modernidade vem das comunidades menos cosmopolitas.
Rio Bravo – A propósito do fato de Emanuel Macron pertencer a um movimento que não tem qualquer vínculo com partidos tradicionais, isso sugere que ele vai ter dificuldades para governar o país ao se confirmar a vitória dele no segundo turno?
Lohbauer – Eu acredito que sim, pelo seguinte. O que aconteceria com Le Pen também. A gente tratou todas essas semanas e meses que passaram da presidência. A gente não se esqueceu, mas não levou em conta que tem um Parlamento que foi também dominado pelos grandes partidos desde 1958, ou pelos socialistas ou pelo menos liderado na sua maioria pelos republicanos ou pelos socialistas. Dessa vez, se você olhar hoje a composição antes das eleições de junho, são 13 membros dos nacionalistas e zero do Marche. Então ele vai ser um presidente que vai ter que compor com um agrupamento de partidos. Provavelmente os socialistas vão apoiá-lo, porque ele é originário dos socialistas, mas os socialistas também não estão em alta. Tanto é que o Hollande é o primeiro presidente que não se recandidata, porque não teria nenhuma chance. Ele vai ter que fazer uma composição totalmente nova, o que também não é difícil. Característica específica da França é o semipresidencialismo. Na França, você tem o presidente e tem o primeiro-ministro. O primeiro-ministro é justamente o líder de composição de maioria das eleições de junho que virão. E certamente vai ser uma co-habitação, que é um presidente e um primeiro-ministro que não pertencem ao mesmo partido, justamente porque o Marche não vai conseguir ter uma maioria de um momento para o outro. Então é uma situação bem complexa do ponto de vista de construção de maioria e como consequência de governo, governabilidade.
Rio Bravo – A Marine Le Pen não teria essa maioria por conta de ela pertencer a um partido tradicional, se virtualmente ela fosse eleita, por exemplo?
Lohbauer – Eu acho que no caso de Marine Le Pen seria pior ainda, porque já existe uma aliança tácita desde as eleições de 2002, que é todos os partidos se unem contra o que se considera uma proposta quase fascista, neofascista, vamos dizer assim. O pai de Marine Le Pen foi candidato em 2002, foi para o segundo turno e até os socialistas apoiaram Jacques Chirac porque não podiam conceber um governo com as características dos nacionalistas franceses. Caso ela viesse a ganhar, eu acho que ela não consegue governar, porque o Parlamento vai se posicionar contra.
Rio Bravo – Ainda assim ela teve mais votos dessa vez do que qualquer outro candidato da direita nas eleições anteriores, inclusive o próprio pai dela, o Le Pen, em 2002. Isso não sinaliza também que haverá uma França, digamos assim, mais fissurada, mais rachada nos próximos anos, e isso não pode ter um impacto negativo do ponto de vista da representatividade, da globalização, na União Europeia?
Lohbauer – Eu acho que sim. O processo francês já é resultado de uma polarização, e toda polarização conceitualmente indica rompimento. Isso tem acontecido em outros países europeus. Essa polarização é resultante da descrença de todos os políticos em geral. Então, ou figuras totalmente novas, que é o caso do Macron, ou figuras radicais acabam se destacando no discurso político. Eu acho que deve acontecer esse fenômeno de divisão da sociedade. É o que aconteceu nos Estados Unidos, é o que acontece no Reino Unido. Os números são sempre 52, 52, 55… São divisões da sociedade. E na França eu acho que pode acontecer isso. Independe muito da habilidade do presidente, considerando que o Macron vai ganhar, de compor um grupo majoritário no Congresso. É trabalho para político “gente grande”, vamos dizer assim. Tem sido raro, nos últimos 20 anos a gente não tem visto lideranças políticas de padrão notável. Isso vale para o mundo inteiro. Eu acho que os últimos políticos importantes da Europa estavam ainda na década de 90. Tinha um francês que a gente considera um perfil de estadista, o François Miterrand. Na Alemanha, o Helmut Kohl. Depois desse senhores é difícil a gente lembrar com uma certa respeitabilidade os líderes europeus. Na própria Inglaterra, depois de Margareth Thatcher, a gente se esqueceu quem são os grandes líderes britânicos. Acho que o Macron vai ter que cumprir esse papel para evitar isso que você está indicando, que eu acho que pode ser possível, que é uma divisão da sociedade francesa.
Rio Bravo – Do ponto de vista da conjuntura internacional, existem temas que são muito fortes hoje em dia, como é o caso da crise migratória. Essa menção é uma espécie de plebiscito a propósito da atuação dos governantes nessa matéria?
Lohbauer – Eu não sei se eu chamaria de plebiscito, mas eu diria que o tema não sai mais da pauta. Por maior que seja o exercício de levar o debate político para todos os temas que interessam ao cidadão, o tema da imigração não vai sair mais da pauta. Ele é muito eficiente para o discurso populista e ele é muito presente no dia a dia do europeu. Em qualquer cidade europeia média e grande, você encontra evidências de pessoas que tiveram que sair dos seus países de origem por violência, por fome, por guerra, e aportaram nesses locais. Isso incomoda, porque o sujeito vai comprar pão e vê alguém que não pertence à sua comunidade ali, de alguma maneira tentando se estabelecer. Isso incomoda por várias razões, inclusive radicalismo, racismo etc. Eu não vejo ainda como um plebiscito, mas eu vejo como uma questão quase que como o terrorismo, é uma questão da agenda permanente. Porque não é no médio prazo, ou mesmo talvez no longo, não é possível ver a Europa sem imigração. O que está acontecendo no Norte da África não tem solução curta, muito menos no Oriente Médio, e até no Leste Europeu se você quiser e países mais ao Leste da Europa, como Ucrânia, Moldávia etc. O próprio Cáucaso… são movimentos que o primeiro porto seguro para você conseguir respirar com sua família é para a Europa. Em todo esse círculo geopolítico que a gente conversava antes. Esse tema vai ser usado sistematicamente pelas lideranças políticas por bem ou por mal. O que eu acho interessante ver é que ainda tem um país, que é a Alemanha, que trata o tema de maneira muito responsável, democrática e transparente. A decisão da Merkel, que está gerando uma polêmica enorme e pode até custar a eleição para ela em setembro, de ter trazido, aberto para 1 milhão de refugiados do Oriente Médio, da Síria em particular, e ter hoje 750 mil refugiados no país é uma decisão de estadista, mas não é a visão que seus vizinhos têm. A França tem dez vezes menos refugiados, tem 75 mil refugiados, e faz esse escarcéu com o discurso dos refugiados e dos imigrantes, e a Alemanha tem 10 vezes mais, tem vivido um problema, mas está lá, a Alemanha está funcionando. Aliás, existe uma maneira de ver a imigração como um benefício, que é um pouco a sociedade alemã vê, pelo menos em sua maioria. Os britânicos também tiveram a postura um pouco mais liberal, o que é natural, mas também positiva da imigração. Os franceses, curiosamente, que se apresentam como uma sociedade multicultural, têm essa dificuldade crônica de lidar com aumento de refugiados. Têm aí muitas diferenças nacionais que eu acho que dificultam para colocar num plebiscito, como se fosse uma coisa “sim ou não”.
Rio Bravo – Essa mudança de postura dos franceses em relação à crise migratória, a gente pode colocar isso como uma consequência dos ataques terroristas de 2015 para cá?
Lohbauer – Acho que parcialmente, porque você vê… Berlim também sofreu ataque, Londres sofreu ataque, um pouco atrás Madri sofreu ataques, Dinamarca sofreu ataques, e as reações não são semelhantes. Os franceses tiveram ataques recentes, dois em Paris, e as reações têm sido um pouco mais radicais dos dois lados, eu diria, inclusive do lado da tolerância também. O francês tem um pouco essa coisa mais maniqueísta no campo das ideias. É de lá que vem a ideia de direita e esquerda, é de lá que vem toda a origem da República Livre. As ideias vêm da França, então a França tem esse perfil mais… As pessoas prestam muita atenção quando acontece na França e tem lá um embate muito permanente entre as ideias. Acho que a reação é francesa. Cada país tem tido uma reação diferente. Infelizmente, eu diria, não dá para ter uma percepção europeia do fenômeno.
Fonte: Rio Bravo Investimentos
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