Que ano, senhoras e senhores! Depois de 2020, a vida deixará de ser como já foi. Mudanças são inevitáveis. O passado ficou para trás; o presente corre apressado, enquanto o futuro ainda não é. O entreato dos acontecimentos faz lembrar conhecida máxima leninista no sentido de que há décadas em que nada acontece e há semanas que geram décadas.
É lógico que cito Lenin em tom de provocação soviética; em tempos em que saber ouvir é raro, num vociferar selvagem de radicalismos burros, é importante constatar que mesmo aquele que pensa diferente de nós pode ter a virtude de boas ideias abstratas. Aliás, a inteligência humana, antes de lados, requer apenas o postulado da razão pensante.
Neste frenético mundo em ebulição, o advento do coronavírus, por suas dores e perdas profundas, exige um obrigatório repensar da realidade posta; se dantes havia dúvidas, agora temos certeza de que não podemos seguir fazendo mais do mesmo. Os desafios no horizonte são complexos, exigindo o protagonismo da cidadania ativa. Hora, portanto, de sair da inércia, encarar os fatos de frente, mudar a rota estabelecida e, juntos, iniciarmos uma nova página no sempre inacabado livro da humanidade superior.
Sim, resta categoricamente demonstrado que as instituições de poder não mais atendem os anseios da cidadania global. Do saneamento básico a escolas e postos de saúde, as deficiências públicas pululam, em alamedas tristes e bucólicas. Logo, não podemos mais negar fatos que gritam, expondo verdades inconvenientes.
Ora, os governos – ineficientes, anacrônicos e incompetentes – deixaram de ser o veículo natural de promoção da democracia. Infelizmente, a decadência da política é uma das cicatrizes abertas da contemporaneidade. A ruptura do tecido democrático é funda, lesando importantes nervos de sustentação da governabilidade constitucional. Não é à toa que discursos extremados de ódio e rancor ganham força e intensidade na praça pública; o desentendimento reina; a ponderação racional fracassa; a confiança se esvai.
Sem cortinas, a crise atual não é meramente política, mas estrutural do poder. Não importa se república ou monarquia, democracia ou ditadura, presidencialismo ou parlamentarismo, é o conceito de autoridade que progressivamente se evapora. A descrença nas instituições se alastra; ética e correção são valores ditos, mas pouco praticados; e, como cereja do bolo, o discurso político não tem mais vergonha de mentir.
No apagar das virtudes, as sociedades ficam ingovernáveis. O descompasso de perspectivas é evidente: enquanto a vida social ganhou velocidade, dinâmica e agilidade, a política permanece com ultrapassados métodos bizantinos. Sem plasticidade, o cidadão não mais aceita ser enrolado por uma estrutura de poder que ganha muito, mas entrega muito pouco. O velho e aturado recurso ao tempo não é mais possível, pois as pessoas querem respostas efetivas e intolerantes com paliativos fúteis.
Por tudo, o futuro próximo será absolutamente instável e o equilíbrio, frágil. Entre o que já foi e aquilo que ainda não é, viveremos uma densa transição de poder. Num dado momento, haverá um rearranjo de forças hegemônicas, como remodelação total ou parcial de determinadas instituições. Sobre a institucionalidade em construção, a extraordinária pujança das Big Techs – com faturamentos soberanos e influência global segmentada – demonstra, por si só, que há novos players e novas lógicas de poder. Aonde isso vai chegar é algo que teremos de ver, vivendo.
Felizmente, cedo ou tarde, as feridas fecham. Mas as cicatrizes ali ficam, fazendo lembrar que existem traumas inapagáveis. Alguns na pele, outros na alma. Na expectativa do porvir, caberá à memória histórica evitar que a democracia cometa os mesmos erros do passado. Por sua vez, os acertos do futuro serão feitos por homens e mulheres de fibra que, sem temer o fracasso, viverão o sucesso da coragem transformadora. E assim, como se por graça divina, a esperança no horizonte já entrevê 2021.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 17/12/2020
Foto: Filippo MONTEFORTE / AFP.