Em virtude da escassez generalizada de recursos públicos para enfrentar a epidemia de coronavírus no Brasil, cidadãos e empresas estão se mexendo para levantar o dinheiro necessário para a compra de equipamentos médicos e o desenvolvimento de tecnologias úteis contra o coronavírus. Em um mês, doações que somam ao menos R$ 1,1 bilhão já foram direcionadas para soluções capazes de complementar as ações do poder público em diferentes níveis de governo no enfrentamento da pandemia.
O cálculo é da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), entidade que monitora os recursos destinados à filantropia no Brasil. A quantia equivale a 30% do volume anual geralmente destinado à filantropia pelas empresas brasileiras. O desafio é manter a solidariedade no longo prazo, dizem especialistas.
Quase 70% das doações foram destinadas à aquisição de equipamentos de saúde como respiradores mecânicos e itens de proteção individual para médicos e enfermeiros, diz a ABCR. O restante foi usado em programas contra os efeitos econômicos da paralisação de atividades com as medidas de contenção da epidemia, como vouchers para a troca de itens básicos de limpeza, higiene e alimentação.
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Juntando as duas vertentes, há ao menos 101 iniciativas da sociedade civil contra o novo vírus no Brasil, segundo o Gife, uma ONG criada para estimular a filantropia no país.
— É um patamar inédito de mobilização de recursos — afirma José Marcelo Zacchi, secretário-geral do Gife.
Em boa medida, as iniciativas partem de empresas de grande porte e que, até agora, tiveram algum fôlego para manter seus negócios, ainda que sofram as consequências negativas da crise. Seguem o manual de responsabilidade social, que mostra a importância dessas iniciativas para a imagem da empresa em momentos como este.
A BR Distribuidora, por exemplo, comprometeu-se a distribuir vouchers de R$ 120 por três meses a 1.660 famílias de baixa renda de comunidades vizinhas à sede da empresa, na região central do Rio. Além disso, a companhia privatizada no ano passado — mas que mantém a Petrobras como principal acionista — deve distribuir materiais de limpeza a 15 instituições públicas próximas, como escolas e unidades de saúde.
A Coca-Cola, também baseada no Rio, criou um fundo para compensar a perda de renda de 11 mil catadores de resíduos, como latinhas de refrigerantes, que também tiveram o trabalho limitado.
Know-how privado
A pandemia vem criando forças-tarefas de empresários e gestores públicos Brasil afora no combate ao vírus em suas regiões. Em Uberlândia, em Minas Gerais, uma aliança desse tipo levantou R$ 700 mil para o conserto de 21 aparelhos de UTI e a compra de roupas para profissionais de saúde dos hospitais públicos locais.
Em São Paulo, a ONG Comunitas levantou R$ 26 milhões para comprar 472 equipamentos de UTI. Outra iniciativa, chamada Fundo Emergencial para a Saúde – Coronavírus Brasil, levantou R$ 3,5 milhões para as necessidades de unidades de referência, como a Fiocruz.
— A cultura de doação está se fortalecendo no país — diz Paula Fabriani, uma das idealizadoras do Fundo.
Em paralelo às vaquinhas entre empresas e pessoas físicas, algumas start-ups, como são chamadas as empresas inovadoras de base tecnológica, passaram a criar soluções gratuitas para dar alguma luz aos governos no desafio de conter o avanço do vírus.
Um exemplo é o Colab, criado em 2013 como um aplicativo para relatar problemas de zeladoria urbana, como buracos na rua ou falta de iluminação pública, às prefeituras a partir de queixas de cidadãos. Em março, o app do Colab ganhou a função Brasil Sem Corona, com um questionário para o usuário checar se está com sintomas da Covid-19.
As informações dadas pelos usuários estão sendo agregadas por outra start-up, a Epitrack, que é dedicada à análise de epidemias. O objetivo é montar mapas das zonas com maior incidência de casos suspeitos da doença. Os dados já são usados por prefeituras como as de Teresina, no Piauí, e Santo André, em São Paulo.
— As informações ajudam a saber, por exemplo, as áreas das cidades com mais casos de Covid-19 subnotificados — diz Gustavo Moreira Maia, fundador do Colab.
A start-up catarinense de biotecnologia BiomeHub está tentando ajudar em outra frente: garantir a segurança da mão de obra em empresas de setores considerados essenciais, que continuam operando em meio ao isolamento social dos que podem ficar em casa.
Um dos negócios da empresa é ajudar gestores hospitalares a avaliar o risco de infecção de profissionais de saúde em suas unidades por meio da análise laboratorial de micro-organismos encontrados em áreas como leitos e corredores dos centros de saúde.
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Testes rápidos
Por causa da pandemia, a BiomeHub criou testes rápidos de coronavírus a serem aplicados em grupos de dez pessoas. A ideia é que, uma vez detectados sinais de vírus em alguém do grupo, esse indivíduo e pessoas próximas sejam isolados e façam os testes convencionais. Patrocinada, em parte, pela Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), a tecnologia deve ser aplicada nas próximas semanas em funcionários de supermercados e postos de combustíveis.
— Estamos em contato com prefeituras para que a tecnologia possa evitar surtos em ambientes públicos — diz Luiz Felipe Valter de Oliveira, presidente da BiomeHub.
Luana Tavares, diretora do CLP, organização para formação de lideranças que montou um guia on-line com boas práticas para parcerias entre os setores público e privado no combate à pandemia, observa que a urgência da crise já teve o efeito positivo de destravar burocracias para a aquisição de equipamentos de saúde. Resta saber o legado dessas iniciativas no longo prazo.
— A crise já nos mostrou a importância de uma boa estrutura de saúde pública. A torcida é para que a sociedade siga vigilante sobre o papel do Estado — diz Luana.
André Tamura, fundador da WeGov, empresa que presta consultoria de inovação em órgãos públicos, vê a crise como uma oportunidade de melhorar as parcerias público-privadas:
— As relações entre empresariado, ONGs e poder público estavam viciadas, com muita desconfiança de todos os lados. As redes formadas para combater a pandemia podem mudar essa imagem.
Fonte: “O Globo”