É velha de mais de 500 anos a desconfiança contra os cidadãos brasileiros. No sistema de Justiça, converter a aplicação da lei em algo sempre especializado, só compreensível pelos bacharéis, com fórmulas misteriosas e formulários labirínticos, é um dos grandes estratagemas do patrimonialismo rentável.
O populismo autoritário latino-americano sempre seguiu a mesma linha. Para fazer valer a desconfiança contra os cidadãos, mas manter as aparências, a clava do controle social do Judiciário – e da imprensa, outra inimiga gramsciana. Todo poder às milícias vestidas de movimento social. Os conselhos populares de justiça dos militantes, não dos cidadãos.
No Brasil, a reforma do Judiciário de 2004 foi a aliança parlamentar inaugural entre o patrimonialismo e o populismo autoritário. A definição dos Poderes de Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário -, núcleo central da vida em sociedade, é motivo de discordâncias inconciliáveis, em todos os tempos, em todos os países. Por aqui houve unanimidade entre situação e oposição na aprovação da reforma do Judiciário. Hoje as páginas policiais registram que a explicação pode estar no comércio ecumênico de algumas lideranças parlamentares da situação e da oposição.
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Antes de chegar a essa reforma, a primeira do governo Lula, contra o último Poder de Estado ainda livre – isso diz muito sobre o desejo desmedido de “tomada do poder” -, alguns movimentos importantes foram feitos no sistema de Justiça. O governo do presidente Lula criou a Secretaria de Reforma do Judiciário dentro do Poder Executivo, órgão inconstitucional de intervenção desabrida de um Poder de Estado sobre outro.
A investida veio com o famoso discurso presidencial de abril de 2003, de denúncia da caixa-preta do Judiciário, com a citação inspiradora de um cangaceiro: “Como dizia Lampião em 1927, neste país quem tiver 30 contos de réis não vai para a cadeia. Ainda em muitos casos prevalece exatamente isso”.
Ao lado da criação inconstitucional da Secretaria da Reforma do Judiciário, outro movimento importante foi inocular o assembleísmo corporativo-sindical não apenas na Procuradoria-Geral da República, mas também nos cargos estratégicos do Ministério Público Federal, em todo Brasil. Os cargos de liderança pública da Nação – presidente da República, ministros do Supremo Tribunal Federal e procurador-geral da República, entre outros – são submetidos a requisitos estritos, segundo a liturgia cerrada da democracia.
No dia da eleição, o cidadão não pode escrever no voto que seu candidato a presidente da República, para a escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal, deverá exigir condições estranhas ao ritual da Constituição. Muito menos poderá fazê-lo o próprio presidente da República. Trata-se, é elementar, de questão indisponível.
Não obstante, uma entidade de classe privada, a Associação Nacional dos Procuradores da República, resolveu fazer lista tríplice censitária por meio da qual apresentaria três “eleitos” só por seus associados. Em junho de 2003 o presidente lula nomeou procurador-geral da República o “mais votado” na lista tríplice inconstitucional. Em setembro de 2003 o procurador-geral da República baixou uma portaria para regulamentar a “eleição” para os cargos estratégicos da instituição em todo Brasil.
Nos Estados, em sistema de chapas, como nos sindicatos, o procurador-chefe, o procurador eleitoral e o procurador dos Direitos do Cidadão passaram a ser eleitos sem nenhum critério. São três posições estratégicas. A primeira tem o poder administrativo organizacional. A segunda, atribuição sobre a classe política. E a terceira torna viáveis ações relevantes contra o poder econômico.
Assim foi feita a verticalização nacional do poder no Ministério Público Federal, da cúpula, em Brasília, até os cargos estratégicos nos Estados. Contra a Constituição. Contra a lei. Por uma portaria.
Quebrado o cristal da institucionalidade, com a conivência ou o adesismo das lideranças do sistema de Justiça, veio a reforma do Judiciário. Nela, o cidadão foi lembrado para pagar a conta de quatro conselhos de Justiça – o Brasil é o único país do mundo a sustentar tal estrutura.
A expansão de cargos públicos, porém, não ficou restrita a isso. O orçamento do Poder Judiciário foi direcionado para sustentar a nova elite sindical judiciária. É oportuno lembrar que o Judiciário brasileiro é um dos mais caros do mundo.
A estrutura gigantesca e dispendiosa serve ao conforto da nova elite sindical surgida com a reforma do Judiciário, mas a magistratura séria e trabalhadora continua a enfrentar o trabalho pesado, em condições adversas, sob intimidação difusa.
A sociedade precisa jogar as luzes da democracia sobre a reforma do Judiciário do patrimonialismo com o populismo autoritário. A Secretaria da Reforma do Judiciário já foi extinta, no curso da agonia do governo Dilma Rousseff.
A Procuradoria-Geral da República deve ser direcionada aos procuradores fiéis à República, não ao corporativismo sindical. Desfazer o grave prejuízo nos cargos estratégicos do Ministério Público Federal é imprescindível.
Uma emenda constitucional deve iniciar a reforma cidadã da administração da Justiça. Além de resgatar a magistratura séria e trabalhadora e acabar com o sindicalismo judiciário, o Congresso Nacional precisa dar voto de confiança ao cidadão e ampliar a instituição do júri, para matéria cível inclusive.
Em vez de buscar a inspiração em cangaceiros, devemos ponderar a experiência de outros países civilizados, onde prevaleceu a compreensão de que o júri de cidadãos é poderosa escola de civismo e instrumento de diminuição dos custos do sistema de Justiça.
O sujeito central do sistema de Justiça deve ser o cidadão, não os sindicalistas de toga e de beca.
Fonte: “Estadão”, 26/10/2018