O jogo democrático mudou; é mais rápido, versátil e fluído, contrapondo-se ao modelo lerdo, formal e estático do século XX. Na verdade, a mudança em si foi da sociedade, trazendo de arrasto suas instâncias de sustentação. Sem cortinas, estamos a vivenciar uma funda transformação estrutural das lógicas do poder; há o gradativo surgir de novos players e de novas dinâmicas de participação política que, por simetria, exigem criatividade e inovação nas regras, métodos, linguagem, interpretação e práticas de legitimação pública e convalidação coletiva.
Os crescentes e calorosos protestos populares, inclusive contra a Suprema Corte, são evidências deste presente incerto, frenético e de intenso civismo constitucional ativo. A compreensão do fenômeno corrente é fundamental para as perspectivas do futuro, merecendo ser analisado com as cautelas e minúcias de estilo, especialmente pelo papel estratégico do Supremo na definição final do que é e daquilo pode ser as regras do jogo na democracia institucionalizada.
Inicialmente, exsurge a clara impressão de que a liturgia reclusa e de reserva do alto tribunal está sendo alterada para um padrão de ostensivo protagonismo institucional. A questão é delicada, pois o STF não é nem pode ser um agente ordinário de pautas políticas corriqueiras. A altura institucional da corte não permite o amesquinhamento de suas supremas funções, independentemente do quão provocado o seja pela doentia banalização de medidas judiciais de empreitada. Em outras palavras, temos que reequilibrar os voláteis anseios da sociedade atual com a distinção e dignidade da corte constitucional.
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A sintomática hipertrofia do Supremo Tribunal é uma consequência direta da atrofia dos demais poderes republicanos. Diante da grave decadência institucional do Executivo e do Legislativo, inúmeras questões políticas relevantes foram sendo irresponsavelmente transferidas para o campo da deliberação jurisdicional. No amanhecer dos acontecimentos, tal transposição de competências foi recebida sem freios pelo alto tribunal, pois aumentava o prestígio e seu consequente poder decisório. O problema é que o trem correu demais, expondo e desgastando os trilhos jurídicos da corte.
O fato é que o Supremo passou a ser silenciosamente usado pelos demais poderes da República. Incapazes de resolver as dificuldades de governar e de fazer as leis necessárias ao bom governo, o Executivo e o Legislativo, em conluio ou não, fizeram da inércia um instrumento de provocação judicial. Durante um tempo, o atalho pragmático serviu. Acontece que os efeitos deletérios da suprema hipertrofia começam a pesar sobre os joelhos da nação. Além de um importante déficit democrático, as insistentes deliberações do Supremo sobre matéria política começaram a atrair gradual insatisfação de grupos cívicos descontentes.
Sim, a situação é absolutamente preocupante e delicada. O poder jurisdicional da corte está tangenciando seus limites e, não raro, beirando a impossibilidade. E, quando o impossível passa ser factível, surge o risco de grave crise na estabilidade constitucional e, ato contínuo, da própria legalidade positiva como imperativo harmônico da vida social. Não à toa, pulsões sociais começam a eclodir através de movimentos assimétricos e inorgânicos, convulsionando ainda mais o anacrônico e ineficiente tecido político oficial.
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Ora, nas sinuosas fronteiras institucionais do poder, a forma jurídica não tem o condão de desnaturar o fato em si. Não se questiona que o Supremo pode muito, mas o muito não é tudo. Sentenças judiciais podem até amenizar, mas jamais resolverão a natureza de problemas políticos autênticos. Por maior que o seja o talento hermenêutico do julgador, a crueza da política exige limites semânticos que vão além da norma posta, extravasando as margens de construção judicial do possível. Logo, está chegada a hora do STF sopesar suas extraordinárias técnicas de jurisdição constitucional, reduzindo suas margens de influência e seus flancos de exposição.
A hora exige comedimento e coragem para expor com clareza os deveres e responsabilidades de cada poder no seio da República. Definitivamente, não cabe à alta corte assumir encargos que não são seus.
Vivemos um tempo de transparência radical sobre as questões do Estado, inexistindo espaço para os velhos métodos de complacência velada com os malfeitos do poder. A sociedade democrática exige um sistema ético do poder, que tenha na lei um instrumento de justiça prática e, não, de impune proteção dos poderosos. Como bem aponta o nobre magistério de Gustavo Zagrebelsky, “a justiça constitucional é uma função republicana”. E a República, para ser séria, próspera e estável, há de respeitar o povo e, não, tratá-lo como tolo. A democracia atual, em sua dinâmica sociedade em redes, é instantaneamente reativa à malversação dos assuntos públicos. Portanto, a política e as instituições republicanas estão cercadas por um sem precedente estado cívico de sítio. Para onde vamos ainda não é possível dizer, mas o civismo constitucional ativo é uma nova força que veio para ficar.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 01/02/2020