Razões criativas nunca faltaram à censura. Embora o apelo à moral e aos bons costumes tenha sido corriqueiro, seus motivos reais oscilavam, em regra, entre o puro arbítrio e as preferências pessoais dos censores. É conhecida a passagem em que um censor, ao ser indagado sobre as razões do veto a uma telenovela, disse ao dramaturgo Dias Gomes: nós não sabemos ao certo por que o censuramos, mas o senhor deve bem saber por que foi censurado!
A Constituição de 1988 livrou-nos da vergonha das tarjas pretas nos filmes, das receitas de bolo publicadas em lugar de notícias e das humilhantes negociações entre artistas e agentes públicos por um verso ou uma palavra. O Estado tornou-se incompetente para autorizar aquilo que não mais depende do seu consentimento: a livre expressão das atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, asseguradas independentemente de censura ou licença.
Apesar disso, ainda pespontam no país formas veladas e sorrateiras de censura, cultivadas à margem da legalidade constitucional. Uma delas tem sido a classificação de espetáculos e diversões públicas, e programas de rádio e televisão, feita pelo Ministério da Justiça. Trata-se, na verdade, de uma subversão do instituto da classificação indicativa, criado justamente para substituir os mecanismos coercitivos e sancionatórios da censura oficial.
Com efeito, a Constituição de 1988 deu à classificação indicativa, de maneira clara e enfática, caráter informativo. O objetivo do constituinte foi o de instituir avisos prévios à exibição dos programas, com o intuito de alertar os pais e responsáveis sobre a sua natureza, horários e faixas etárias a que não se recomendem. Por evidente, não há como se extrair de uma mera recomendação qualquer efeito obrigatório. Do contrário, ter-se-ia reinstaurada a necessidade de licença estatal para a veiculação de programas.
Todavia, sucessivas portarias do Ministério da Justiça que regulamentaram a classificação passaram a vincular as faixas etárias a horários de exibição, sujeitando as emissoras de rádio e televisão a severas punições pela veiculação de programas em horário diverso do autorizado. Isso insuflou espíritos saudosistas e fomentou a transformação de um instrumento meramente indicativo em um mecanismo impositivo sobre a liberdade de programação das emissoras. Numa interpretação retrospectiva da Constituição, devolveríamos ao Estado o poder de autorizar ou não alguns programas em determinados horários, além de interferir no conteúdo da criação artística e intelectual. Com o perdão do trocadilho, trata-se de uma espécie de classificação contraindicada pela Constituição democrática de 1988. Vale lembrar que o STF já decidiu que ao Estado não cabe definir previamente o que pode ou não pode ser dito, aí incluídas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação em geral.
Registre-se que a recentíssima Lei nº 12.485/2011 – que instituiu um novo marco legal para a comunicação audiovisual de acesso condicionado (TV por assinatura) – já se enquadrou nas balizas constitucionais, prevendo apenas a classificação informativa, sem vinculação de horários. O papel do Ministério da Justiça, assim, passou a ser o de monitorar e fiscalizar as informações prestadas aos assinantes.
O problema subsiste, no entanto, em relação à TV aberta. Nele não está em jogo apenas o direito das emissoras de livre veiculação de seus programas, nos horários e com os conteúdos que atendam aos seus telespectadores. Nele está em jogo uma questão de princípio: o princípio de que a cada cidadão adulto, e não ao Estado, devem caber as escolhas morais sobre a própria vida e a educação de seus filhos.
Fonte: O Globo, 14/10/2011
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