Sob a mão visível do Estado
Publicado em 18/09/2010 |Guido Orgis
Projetos para criação de novas estatais retomam discussão sobre a interferência do governo nas relações econômicas do país
Os brasileiros terão até as eleições de outubro uma excelente oportunidade para discutir que tipo de intervenção do Estado na economia é desejável para o país. O assunto – admita-se, pouco palatável e dos mais permeados por ideologias – apareceu nas últimas semanas em comentários e discursos de candidatos.
A interação entre Estado e mercado é o mecanismo que está por trás do funcionamento das relações econômicas no país. Ela tem gradações, que vão da quase ausência de presença estatal até a concentração total da produção nas mãos do Estado. Existem dezenas de combinações testadas em todo o mundo e o Brasil está construindo desde a Constituição de 1988 seu próprio sistema. A tendência, porém, é clara: o Estado está ganhando mais força.
Para desespero de ultraliberais e socialistas, nem mercados livres, nem o estatismo puro entregam o que se espera da relação entre Estado e mercados. Todos os países desenvolvidos optaram pela soma de ingredientes como a propriedade privada e o estímulo à livre iniciativa, à educação pública e alguma forma de proteção social provida pelo Estado. Para funcionar, os opostos trabalham juntos.
Há, porém, diferenças entre os países. Tome-se o exemplo da França. Em uma mostra do peso estatal, as lojas do país só podem fazer promoções durante dez semanas do ano, cinco no inverno e cinco no verão. É uma restrição comercial imposta pelo Estado e que não seria aceitável nos Estados Unidos. Mas uma boa parte dos americanos inveja o sistema de saúde pública francês, que alcança toda a população – tanto que o governo Barack Obama conseguiu aprovar há algumas semanas uma reforma que amplia o acesso a seguros de saúde e que aqueceu disputas ideológicas no país.
O modelo que se desenha no Brasil é de um Estado que pretende ser mais ativo na economia. Ele já está entre os que mais recolhem impostos em todo o mundo – a carga tributária de 2009, de 35% do PIB, é comparável à da Alemanha. O governo tem participação em grandes companhias, entre elas a Petrobras, que exerce na prática um monopólio no refino de combustíveis no país e ganhou de bandeja a exclusividade na exploração do petróleo pré-sal. Nos últimos anos, o setor público também se apresentou como um parceiro de negócios através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e de pacotes fiscais que são direcionados a setores estratégicos.
A reação à crise econômica foi a última cartada no aumento de poder do Estado. Ao reduzir alguns impostos e colocar os bancos públicos para conceder crédito, o governo deu suporte para que a economia brasileira saísse da recessão com poucos arranhões. Nesse processo, o peso dos bancos públicos na concessão de crédito passou de 36,5% para 41,5% do total.
“A discussão é internacional, porque na crise a China, que é controlada pelo Estado, se saiu muito bem. No Brasil, o governo Lula já vinha com programas que aumentam o papel do Estado e o país também foi bem no ano passado”, comenta o economista Rubem Sawaya, professor da PUC-SP e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política. Sawaya defende que o movimento de maior intervenção estatal pode tornar sustentável o crescimento brasileiro. “Os momentos nos quais o país mais cresceu foram aqueles com maior influência do Estado, nas décadas de 50 e 70. Agora vemos uma retomada da organização estatal voltada para o crescimento.”
Eficiência
Um dos principais argumentos em favor do peso maior do Estado é que ele seria capaz de fazer coisas que o mercado não faz – ou que a sociedade não quer deixar em mãos privadas. A discussão entre estatistas e liberais se acirra quando o Estado faz o que o mercado estaria disposto a fazer. A partir dos anos 50, emergiu uma política de desenvolvimento que se baseava na criação de empresas estatais que substituíssem importações ou fizessem investimentos em infraestrutura. Foi assim que surgiram a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Vale, Petrobras, Embraer, e o sistema Telebrás.
A versão mais recente dessa política é a criação de estatais em áreas de tecnologia – é o caso da Ceitec, que produz circuitos integrados em Porto Alegre. Há também o polêmico projeto de ressuscitar a Telebrás para que ela leve a banda larga para um número maior de municípios – ideia que está cercada de dúvidas sobre as intenções que a fizeram progredir dentro do governo. Outra característica do estatismo no século 21 é o uso do BNDES como financiador, e às vezes sócio, de fusões que criam grandes grupos nacionais, como a união de Brasil Telecom e Oi.
Uma dessas fusões chegou a um limite perigoso: o monopólio. No setor petroquímico, a união de Braskem e Quattor concentrou em uma única companhia, com forte presença do governo através da Petrobras, toda a produção nacional. Agora, o governo pretende montar uma grande companhia de energia com a união de CPFL, Neoenergia e Brasiliana, com ajuda de grandes fundos de pensão.
“É um retrocesso achar que a criação de novas grandes estatais levará ao desenvolvimento”, critica o economista Sabino da Silva Porto Jr., professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A atuação do Estado, seja diretamente o através do BNDES, fortalece a apropriação de recursos públicos por grupos de interesse. E isso aumenta o risco de ineficiência.”
Regulação
Os críticos da criação de novas estatais lembram que o projeto de privatizações dos anos 90 se baseava na ideia de que o Estado passaria a regular de forma mais intensa a atividade privada. “A ideia era ter técnicos regulando setores importantes, sem interferência política e que ajudariam o Estado a assumir um papel de indutor do desenvolvimento”, diz o economista Cláudio Considera, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e ex-secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda. “As agências foram enfraquecidas durante boa parte dos últimos anos e há agora a tentativa de voltar a unir Estado e produção”, observa.
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