“Sarney tem uma história suficiente para não ser tratado como uma pessoa comum”. (Presidente Lula – 2009)
“A primeira coisa que um político de lá (de Bruzundanga) pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferente do resto da população”. (Lima Barreto – 1923)
Incrível semana. O Supremo Tribunal Federal acaba com as implicações legais do diploma de jornalista e desfere um golpe de morte no velho corporativismo hierárquico dos diplomas oficiais já denunciado por Lima Barreto como inventores de “castas doutorais”. Eis uma decisão modernizadora, do lado da igualdade e da liberdade que vai promover uma maior responsabilização do mercado no sentido de separar diploma de capacidade profissional, coisa que — nesta mesma semana — foi confundida pelos presidentes Sarney e Lula que defenderam o velho componente hierárquico-aristocrático do Brasil.
De um lado, uma vértebra aberta; do outro, o ideal da imobilidade que ronda o poder à brasileira. No STF, a medida que reconhece a igualdade e a liberdade como valores centrais da atividade jornalística, pois o papel do jornal não é embrulhar peixe, mas transformar o chamado “real” numa criatura domesticável, compreensível e, tanto quanto possível, bela, verdadeira e suportável. Uma coisa — diz o STF — é o curso de jornalismo; uma outra é a exclusão de quem não tem diploma de exercer o jornalismo.
Na nossa mania tordesilheana de regulamentar o mundo, nosso horror às fronteiras e a nossa obsessão de resolver a realidade com a lei, inventamos diplomas com efeitos legais que dão direitos exclusivos, garantem aumento de salário e livram a pessoa da prisão.
Neste sentido, o “canudo” tira o cidadão de condição de pessoa comum, dando-lhe sangue azul ou, como diz Sarney, uma “biografia”.
O discurso de Sarney estarrece pela dissociação entre o orador e a instituição que preside. A crise é do Senado, não é dele, Como, se ele é senador e presidente? A esquizofrenia impede responsabilização e justifica as hipocrisias. Não dá mais para pensar que uma coisa é a lei e outra é a policia ou quem cometeu o crime. Ou as regras produzem efeitos ou elas não têm valor. É o zelo pelas normas que garante a legitimidade institucional.
Se um jogador de futebol não honra e internaliza as regras do jogo e diz não é dele, mas do futebol, adeus esporte. Como é possível um motorista que nada tem a ver com o trânsito? Ou um prefeito que nada tem a ver com o ilegal? A capacidade de dissociarse das responsabilidades inscritas nos cargos é uma característica dos sistemas de éticas dúplices, como, aliás, digo em “Carnavais, malandros e heróis”.
Neles, quem é especial não se sujeita às mesmas regras dos comuns. Um Lula-presidente percebeu o problema. Quando metalúrgico, denunciava mais portentosamente do que os jornais; como presidente e pessoa incomum e com “biografia”, acusa a mídia. A perspectiva hierárquica está convencida que ninguém pode se orgulhar de ser uma pessoa comum — esse ponto crucial das democracias liberais e do republicanismo. Eis um belo exemplo de como conceito igualitário de cidadania é reinterpretado hierarquicamente pelo senador e pelo presidente quando observam que, dependendo da “biografia”, o sujeito está isento de dar satisfações e de ser cobrado pelo que deve ao país que lhe paga o ordenado e mordomias.
Pela angulo da vertente hierárquica, o sonho é ser um “brâmane” ou nobre — ou ambos! Faz tempo eu sugeri que o papel de renunciante do mundo tem também um lugar importante na política nacional, um universo no qual se entra jurando fazer todos os sacrifícios em nome dos famintos e dos pobres e fica-se imensamente rico justamente por causa disso. Pertencer as “altas esferas” e aninhar-se em alguma “boca” — um emprego sem trabalho — ainda é um projeto. Emprego público é uma contradição em termos porque os funcionários — com as exceções de sempre — não são do público e o sistema opera ao contrario: é o público que lhes deve boa vontade e respeito.
Igualzinho ao discurso de Sarney (e a sua defesa por Lula) que, no fundo, é uma rara e importante peça reveladora de como os políticos profissionais brasileiros (no poder) pensamse a si mesmos. O sistema é duplo.
Há uma ética para o cargo e outra para a pessoa que o ocupa. Os cargos criam aristocracias ou “castas”.
Mas com uma diferença crucial pois, pela brasilianização do sistema de castas que, na Índia, não contempla o individualismo existente entre nós, quanto mais em cima, menos é preciso cumprir as leis. Na Índia, entretanto, ocorre o exato oposto. Lá, um brâmane justamente por ser mais puro (e não mais poderoso) é obrigado a seguir todas as regras e a dar o exemplo. Aqui, porém, como temos uma hierarquização com igualdade, sem interdependências morais, de modo que só as “castas” mais baixas são obrigados a obedecer as leis. Os “brâmanes”, sendo pessoas excepcionais e tendo biografias, estão acima das leis que, um outro pedaço do sistema (que se define — eis o problema — como republicano e igualitário) diz que valem para todos.
É justo este dilema que despedaça a coluna. Pelo menos a minha que, depois de um mês de férias e justo tratamento, só vai voltar em agosto.
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