Há algo desconcertante em visitar uma fábrica de médio porte no interior da Baviera e descobrir que o técnico operando um robô de última geração não tem diploma universitário, mas passou três anos alternando entre a linha de produção e uma escola técnica estadual, recebendo salário desde o primeiro dia. Mais desconcertante ainda é saber que a tecnologia embarcada naquele robô nasceu não em uma universidade, mas em um instituto Fraunhofer próximo, onde pesquisadores são pagos pelo governo mas precisam captar 70% de seu orçamento vendendo soluções para empresas como aquela. Este é o paradoxo alemão: um país que domina cadeias industriais globais sem ter uma única universidade entre as 20 melhores do mundo, que exporta máquinas-ferramenta de precisão nanométrica mas cujos campi universitários são administrados como repartições públicas de gestão pouco ágil.
O segredo está numa arquitetura de inovação que o Brasil reproduz parcialmente e de forma fragmentada.
O sistema dual de pesquisa aplicada
O sistema de pesquisa na Alemanha opera com base em uma divisão de trabalho transparente. As universidades formam mão de obra qualificada e investem em pesquisa básica. A pesquisa que vira produto, processo ou patente acontece majoritariamente fora dos campi, numa constelação de organizações públicas não universitárias que compõem um sistema paralelo de P&D: a Sociedade Max Planck, rede de institutos voltados à pesquisa básica independente guiada por excelência científica; a Associação Helmholtz, que opera grandes centros e infraestruturas nacionais dedicados a missões de longo prazo (como clima e transição energética); a Fraunhofer-Gesellschaft, especializada em pesquisa aplicada e transferência tecnológica em parceria com a indústria; e a Comunidade Leibniz, que reúne institutos interdisciplinares de interesse público na interface entre ciência e sociedade (de economia e políticas públicas a museologia e biodiversidade).
Cada uma dessas organizações (centenas de institutos espalhados pelo país) tem governança própria, orçamento próprio, métricas próprias. Um diretor de instituto Max Planck tem ampla autonomia para montar sua equipe e definir sua agenda de pesquisa. É o chamado “princípio Harnack”: confie em cientistas com capacidade comprovada, dê a eles recursos e liberdade, e cobre resultados em ciclos longos. O modelo produziu 31 prêmios Nobel.
Já a Fraunhofer-Gesellschaft, com seus 76 institutos e quase 32 mil funcionários, opera sob uma lógica de mercado: o governo fornece apenas 30% do orçamento base como “capital semente” para traduzir ciência em aplicação prática; os outros 70% precisam vir de contratos com empresas ou projetos competitivos (como editais, etc). Um instituto Fraunhofer que não prospecta projetos fecha as portas. Esta pressão darwiniana garante que a pesquisa permaneça colada às necessidades reais da economia.
A reprodução do modelo no Brasil
O Brasil não é alheio a esse modelo. A Embrapii, criada em 2013 e inspirada diretamente na Fraunhofer, é talvez a nossa experiência mais sofisticada de aproximação entre pesquisa e indústria. Funciona como Organização Social (OS): uma entidade privada que recebe recursos públicos por meio de contratos de gestão, supervisionados por representantes do governo, em que a liberação de verbas depende do cumprimento de metas. Esse arranjo permite operar fora das regras tradicionais de contratação e compras públicas, garantindo flexibilidade. O modelo se baseia no cofinanciamento entre governo, empresas e instituições executoras, e já gerou resultados relevantes em áreas como saúde e manufatura avançada. Há ainda os Institutos SENAI de Inovação, que buscam reproduzir elementos do modelo dual alemão, combinando formação técnica e pesquisa aplicada.
Mas a diferença fundamental está na escala e, sobretudo, na integração sistêmica. A Embrapii administra centenas de milhões de reais por ano; a Fraunhofer movimenta mais de 3.5 bilhões de euros. Mais importante: enquanto a Embrapii é uma ilha de governança diferenciada em meio a instituições tradicionais, o sistema alemão inteiro se organiza a partir dessa lógica de especialização, autonomia e responsabilização. Não temos um equivalente real ao Max Planck – o IMPA (este também uma OS), a Embrapa e o ITA são exceções honrosas, mas isoladas.
Inspirar-se, sim, mas sem ingenuidade
O modelo alemão é intrigante, mas não é panaceia. Ao erguer uma rede paralela de institutos de pesquisa (Fraunhofer, Helmholtz, Max Planck, Leibniz), o país ganhou em produtividade, mas também reduziu a pressão para que o sistema universitário entregasse mais valor. O resultado é um ecossistema com boas instituições universitárias distribuídas pelo país, em geral administradas pelos governos estaduais, porém sem a pressão competitiva necessária para forçar a diferenciação institucional e permitir o surgimento de um núcleo enxuto de universidades de ponta na fronteira da produção científica. Não por acaso, a universidade alemã mais bem colocada raramente aparece entre as vinte primeiras posições dos rankings de maior prestígio. O sistema que entrega tecnologia não compensa a ausência de universidades com desempenho de fronteira.
As causas estão, ao menos em parte, na lógica burocrática que molda a administração dos campi: salários tabelados, pouca autonomia para remunerar por desempenho, captar e alocar recursos com flexibilidade, firmar parcerias ambiciosas e selecionar alunos. Nos EUA, grandes endowments e overheads permitem às universidades agir quase como gestoras de portfólio/venture, tomando risco em laboratórios e talentos e capturando o upside via patentes e filantropia. Na Alemanha, as universidades dispõem de pouca “munição de risco”; a tomada de risco científico migrou para a rede de institutos, enquanto os campi ficaram mais próximos de departamentos públicos. A própria Alemanha começa a reconhecer os limites desse modelo, e iniciativas como o Instituto de Tecnologia de Karlsruhe (KIT), que em 2009 fundiu uma universidade a um centro de pesquisa da rede Helmholtz, sinalizam uma tentativa de quebrar essa divisão. Contudo, mesmo esses passos importantes esbarram na questão central: sem autonomia, competição e instrumentos próprios de capital, é irreal esperar que surja um conjunto de universidades na fronteira apenas com mais verbas ou com vistos para atrair pesquisadores em trânsito.
Cópia, inércia ou adaptação inteligente?
Ao analisar modelos de sucesso como o alemão, a tentação de propor uma importação integral é grande, mas seria um erro. O sistema germânico é produto de uma evolução institucional centenária (a Kaiser-Wilhelm-Gesellschaft, predecessora da Sociedade Max Planck, foi fundada em 1911) e está enraizado numa cultura de planejamento de longo prazo, confiança e cooperação entre seus atores, pilares que não encontram o mesmo alicerce no Brasil.
Contudo, a recusa à cópia não pode ser um pretexto para a inércia. O caminho é adaptar os princípios que funcionam.
O primeiro passo é romper com o modelo único. Em vez de esperar que todas as universidades federais sejam simultaneamente Harvard (ensino de elite), MIT (inovação) e community colleges (inclusão), precisamos incentivar o desenvolvimento de missões institucionais distintas, cada uma com sua governança. Algumas poderiam focar em pesquisa de fronteira, com forte internacionalização; outras, na formação profissional de excelência; e um terceiro grupo, na extensão e no desenvolvimento regional. Essa autonomia, no entanto, exige contrapartidas: métricas de desempenho específicas para cada missão e uma forte cultura de responsabilização por resultados.
Um segundo aprendizado é que a autonomia efetiva exige sustentação financeira. Nesse sentido, os endowments universitários (ou fundos patrimoniais) são uma ferramenta estratégica. Embora recentes no Brasil, ganharam força com a Lei 13.800/2019, e hoje já existem dezenas de fundos ativos. O maior é o Fundo Amigos da Poli (Escola Politécnica da USP), gerido por ex-alunos, com cerca de R$ 50 milhões em patrimônio (segundo dados do Monitor de Fundos Patrimoniais no Brasil, elaborado pelo IDIS). O desafio, agora, é escalar esse modelo: profissionalizar a captação de recursos, consolidar estruturas de governança e garantir que os rendimentos sejam bem aplicados. Esses recursos podem financiar pesquisas de longo prazo, bolsas de estudo e infraestrutura de ponta, assegurando estabilidade e visão de futuro. Na Alemanha, essa lógica também ganha força: a Fundação Max-Planck já acumula quase 1 bilhão de euros para dar flexibilidade à pesquisa. Globalmente, a competição é ainda mais acirrada. O Japão, percebendo uma perda de competitividade, lançou em 2022 o maior fundo universitário do mundo, de US$ 70 bilhões, para garantir um fluxo permanente de recursos a suas universidades de elite.
Em terceiro lugar, a excelência depende de quem a produz, e ela não pode ser garantida por decretos ou direitos automáticos. No Brasil, a estabilidade é concedida no momento da entrada por concurso, sem conexão direta com o desempenho subsequente, o que gera um desalinhamento de incentivos. O pesquisador não tem estímulos estruturais para manter a alta produtividade ao longo da carreira. Precisamos de um modelo no qual a estabilidade seja consequência de resultados concretos, com avaliações periódicas e critérios claros. A Alemanha avança nessa direção com seu programa de Tenure-Track, implementado em 2016, no qual jovens professores passam por um período probatório de até seis anos e só alcançam a posição vitalícia após avaliação rigorosa, tornando a estabilidade uma recompensa pelo mérito comprovado.
Mas não basta alinhar incentivos internos; é igualmente urgente abrir as universidades ao mundo. Concursos internacionais e financiamentos para atrair talentos são fundamentais. O exemplo do IMPA mostra o potencial dessa estratégia: dos seus 48 pesquisadores, 18 são estrangeiros; 40% dos alunos de mestrado e doutorado e 60% dos pós-doutorandos vêm do exterior. Esses números ilustram como a internacionalização ativa e a flexibilidade institucional são motores de excelência. Para o país avançar, é preciso combinar incentivos focados em resultados com a construção de um ambiente acadêmico permeável ao mundo, capaz de atrair e reter os melhores talentos.
Modernizar sem demora
Observar a Alemanha é perceber que a excelência em inovação não resulta do acaso, mas de uma arquitetura institucional construída ao longo do tempo. Seu pragmatismo em manter trilhas distintas para ciência básica e tecnologia aplicada oferece um exemplo claro de organização. Mais importante ainda é a capacidade de reconhecer falhas: o diagnóstico de que o modelo gerou um hiato universitário e os esforços em curso para reconectar pesquisa de ponta aos campi. A Alemanha não permanece imóvel; ajusta-se continuamente.
Para o Brasil, essa combinação de conquistas e autocrítica deveria servir de alerta. Não se trata de copiar o Fraunhofer ou o Max Planck, mas de adotar a disciplina e a clareza de propósito que os sustentam. Se uma das economias mais avançadas do mundo considera urgente atualizar o próprio sistema, o Brasil não pode adiar sua modernização. A inspiração externa é útil, mas o essencial é traduzir isso em mudanças concretas: alinhar incentivos, ampliar a internacionalização e estruturar um modelo de ciência e tecnologia capaz de sustentar o crescimento do país no longo prazo.