A pandemia causada pelo novo coronavírus provavelmente alterou o jeito como você se veste atualmente e até freou as compras de novas peças de roupas que você faria com a virada da coleção.
Estava com ingressos de shows e festivais comprados? A essa altura do ano já deve ter recebido o reembolso. Com mais tempo em casa, no entanto, deve ter passado pela sua cabeça mudar os móveis, fazer uma pequena reforma ou decorar mais seu espaço. E seu consumo de streaming? Aumentou? Assinou uma nova plataforma?
Moda, arquitetura, design, música, audiovisual, dança, teatro e games. Por trás desses eventos e produtos que fazem parte do nosso cotidiano (e que sofreram severas mudanças comportamentais em tempos de distanciamento social) existem empreendedores. Juntos, eles compõem a chamada economia criativa. De acordo com a mais recente pesquisa do Sebrae, esse é o segundo setor mais afetado pela pandemia, registrando queda de 70% no faturamento, atrás apenas do turismo.
Esta série de reportagens do Estadão PME busca retratar como micro e pequenos negócios da economia criativa estão sobrevivendo e resistindo à crise global. No campo do entretenimento, o artista e empreendedor Fióti conta os desafios do LAB Fantasma em meio à avalanche de shows cancelados e aos novos rumos de segmentos como música e moda .
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A crise não atinge todos os segmentos da economia criativa da mesma forma. A indústria de games, por exemplo, teve recorde de receita em todo o mundo logo no mês de março. Estúdios de animação também registraram aumento da demanda.
Ao mesmo tempo, o Cirque du Soleil entrou em um programa de recuperação judicial no Canadá após demitir 95% dos funcionários e cancelar 44 espetáculos pelo mundo. As salas de cinema do País estão fechadas, assim como os teatros. Com isso, a produção de espetáculos e obras audiovisuais estão paralisadas ou tentando se adequar aos protocolos de segurança para ensaiar uma retomada. O mercado da música, com exceção das lives, também encara uma pausa que silencia artistas de todos os gêneros musicais.
“A economia criativa tradicional está em crise. As salas de cinema e os teatros, por exemplo, vão sofrer. Mas ao mesmo tempo você tem o aumento significativo nas assinaturas das plataformas de streaming (como Netflix)”, diz Lucas Foster, empreendedor e criador do Dia da Criatividade.
“Tradicionalmente, a produção cultural no Brasil é analógica. Somos um povo outdoor e por isso a produção cultural sempre caminhou para a rua, para o equipamento cultural, que tem a ver com a nossa tradição de grandes eventos”, pondera. “As pessoas ainda não sabem extrair valor das lives, por exemplo. Tudo estava muito estabelecido no físico: você paga um ingresso por uma cadeira. E no digital? Quantas pessoas cabem em uma sala de live?”
O QUE É A ECONOMIA CRIATIVA?
O setor reúne profissionais e negócios que se utilizam da criatividade como matéria-prima principal para ressignificar ou gerar valor para um determinado setor. Por exemplo, a arquitetura e o design são os segmentos criativos da indústria da construção civil. Músicos se utilizam da criatividade para criar músicas e espetáculos que geram valor para a indústria do entretenimento. O estilista, por meio de seus desenhos autorais, cria novas peças e gera tendências para a indústria da moda. A criatividade é o que gera valor intangível a esses negócios, que não podem ser replicados por qualquer pessoa.
Sonia Helena dos Santos, professora de criatividade nos cursos de Cinema, Publicidade, Produção Cultural e Administração da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), destaca a importância dos grandes eventos para a economia criativa na cidade de São Paulo, como o carnaval, a Parada LGBT, a São Paulo Fashion Week e a SP Arte.
2,61% é a representação do PIB criativo do País, com R$ 171,5 bilhões. Inclui 245 mil estabelecimentos e 837,2 mil profissionais, segundo o Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil 2019, da Firjan
“As pessoas, quando vêm para esses eventos, fortalecem a hotelaria, os restaurantes e bares, as pessoas que fizeram seus figurinos (no caso do carnaval), visitam museus. Além disso, tem uma grande parcela de profissionais que trabalham com produção, iluminação e som, por exemplo. O setor emprega muita gente e é isso o que preocupa”, diz.
O réveillon na cidade de São Paulo já foi cancelado pela Prefeitura. Há incerteza sobre o carnaval 2021, que não será realizado no mês de fevereiro. Neste ano, a festa atraiu cerca 15 milhões de pessoas para a capital paulista e gerou R$ 2 bilhões de receita.
Assim como em outros setores, muitos empreendedores procuram por crédito para sobreviver ao período. O Desenvolve SP, banco do empreendedor do Estado de São Paulo, destinou R$ 275 milhões exclusivamente para pequenas e médias empresas com pilares em cultura, economia criativa, turismo e comércio.
Há também a lei federal Aldir Blanc, criada para amparar artistas, coletivos e empresas que atuam no setor cultural, implementada em três frentes: auxílio de R$ 600 pagos em três parcelas, subsídio a espaços artísticos e culturais com valor de R$ 3 mil a R$ 10 mil e facilidade de crédito, que deve ser pago em até 36 meses, reajustados pela taxa Selic, a partir de 180 dias depois do final do estado de calamidade pública.
Os especialistas ressaltam a importância da economia criativa para a geração de inovação no País. “É um núcleo estratégico para a economia como um todo porque é nesse nicho que os outros setores não criativos vêm buscar inovação e diferencial competitivo que não seja necessariamente em redução de custo ou produtividade”, completa Lucas Foster.
Marca autoral de moda cria ‘malinha’ e se reinventa sem loja física
Há cerca de 10 anos, as estampas de saias, calças, blusas e vestidos criados por Kelly Teixeira coloriam um perímetro da Rua Augusta, em São Paulo. Criadora da Bendita Maria, a empreendedora tinha a loja física como seu alicerce. Além do contato com as clientes, ajustes e consertos tinham um espaço reservado no local, assim como o estoque de peças e tecidos. Com a pandemia, em três meses as portas se fecharam e o apartamento em que ela mora teve que abrir espaço para as máquinas de costura.
“Nos primeiros dias de decreto, eu não fiquei desesperada porque eu tinha certeza de que iríamos reabrir em 30 dias, no máximo. Mas, quando comecei a ver que isso não iria acontecer, entendi que deveria migrar para o online”, conta. A queda de 90% no faturamento e a porcentagem baixa oferecida pelo proprietário do imóvel para renegociar o aluguel também pesaram na decisão. Restava então resgatar o site e aprender do zero a gerir um e-commerce.
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De cursos no Sebrae a produção de fotos para abastecer a loja virtual, Kelly colocou tudo de pé em apenas uma semana. Uma migração em tempo recorde para quem lidava diretamente apenas com o desenho, a modelagem e a compra de tecidos. Com o e-commerce no ar, a primeira ação foi a produção de máscaras.
“Eu tinha a matéria-prima. Anunciei em grupos do WhatsApp, pedi ajuda para os amigos e deu super certo, a resposta foi muito rápida. Mas logo muitas pessoas começaram a produzir e a demanda caiu”, conta.
De olho no que as grandes empresas estavam fazendo, ela teve a ideia de criar a Bendita Malinha. “As clientes começaram a ver o site, mas não tinham tanta noção de tecido e tamanho. Então montei uma mala com algumas peças, coloquei nas redes sociais e comecei a distribuí-la para algumas clientes. O que facilitou muito a compra, trouxe comodidade, segurança e ainda a deixou mais assertiva.”
Inspirada no modelo de consultoras de empresas de cosméticos, Kelly implementou o modelo para aumentar as vendas. “Montei um catálogo muito simples para as minhas amigas e perguntei se elas tinham interesse em vender e ter uma porcentagem em cada venda. Estou com duas consultoras”, diz.
Por fim, a empreendedora também fechou parcerias com três influenciadoras digitais. De acordo com ela, o retorno é quase imediato. “Conseguir passar a emoção do seu produto e mostrar o seu trabalho de forma presencial é muito mais fácil. Nas redes sociais é difícil, a energia é muito maior. E quanto mais próximo você está do cliente, mais você gera valor.”
Mas como fica a criatividade? Ao mesmo tempo em que é preciso equilibrar a gestão da empresa, é necessário também criar novas peças. Mesmo com o estoque da coleção inverno cheio, Kelly já pensa em novos modelos.
“A marca já tinha um conceito de peças confortáveis. 90% do tecido utilizado é viscose, que é um tecido mais leve. Busquei sempre as estampas, o conforto e a leveza. O que mudou quando penso em desenhar e desenvolver novas peças agora é sobre os aviamentos: menos é mais. Com isso, diminui-se o custo da peça, a produção dela é mais rápido e ainda chega com um preço mais acessível ao cliente”, conta. “Quando estou desenhando penso em mim mesma. Minha renda caiu, mas eu ainda me arrumo para ficar em casa.”
Fonte: “Estadão”