Nos últimos dez anos, o trabalho no Brasil começou a ganhar uma cara nova, mais humana e amistosa. É uma tendência que se acelerou ainda mais com a pandemia do novo coronavírus – que tornou mais tênue as fronteiras entre trabalho, casa, família, estudo e amigos.
A boa notícia chega junto com o lançamento da décima edição do anuário Época NEGÓCIOS 360°, já nas bancas. Comparando os números da publicação deste ano com os da primeira edição, percebe-se o alastramento por aqui dessa tendência de criação de práticas que promovam o propósito e o bem-estar dos funcionários, além de acomodar suas demandas de uma forma mais personalizada.
É um movimento que começou lá fora, de forma meio tênue, em meio à crise econômica de 2008, e que disparou nos últimos dois anos, com o crescimento acelerado do home office no universo executivo. Alguns especialistas chamam essa tendência de Employee Experience (experiência do funcionário), ou EX, um termo baseado na já tradicional UX, a experiência do usuário – o sistema criado por startups para avaliar dores e delícias de quem usa seus produtos e serviços. Outros preferem chamar simplesmente de trabalho humanizado, novo trabalho ou mesmo tratar como uma evolução natural do sistema atual, para fazer frente aos questionamentos crescentes.
Seja qual for o nome, esse novo tipo de trabalho desembarcou definitivamente no Brasil. A porcentagem de empresas onde todos os funcionários participam da definição das próprias metas, por exemplo, passou de 31% para 44%; na contramão, o índice daquelas onde o time não participa dessa discussão caiu de 16% para 9%. Mais: o levantamento mostra que apenas 5% das companhias não possuem canais formalizados de conversa com a equipe.
Outro aspecto importante identificado é o crescimento de ações corporativas práticas relacionadas à inclusão. Não se trata apenas de um indicador isolado, mas de uma série de índices que apontam para cima. Metas de contratação de minorias, geração de oportunidades para comunidades carentes, produtos para os mais necessitados, monitoramento de fornecedores – todos eles apontam elevação ao longo da década.
Melhor ainda: nenhum dos índices pesquisados revelou uma adesão menor do que 50%. Isso significa que mais da metade das melhores empresas do país adota pelo menos uma prática social na forma como conduz seus negócios.
As companhias também se mostram mais dispostas a cooperar com o desenvolvimento educacional dos funcionários, tanto através das universidades corporativas quanto, principalmente, do convênio com escolas e universidades – um índice que disparou ao longo da década, passando de 35% para 83%.
Esse aumento surge na esteira da adoção da prática de educação continuada por empresas de médio e pequeno porte, uma opção atraente para companhias que normalmente não possuem recursos suficientes para implantar uma universidade própria, mas que se preocupam com a qualificação de sua equipe.
Por outro lado, há pontos de demandam cuidado, como a preparação dos funcionários da própria empresa para ocupar uma posição executiva no momento da abertura de uma vaga. O índice atual de empresas com pelos menos uma pessoa preparada está na casa dos 67%. É uma porcentagem vista como razoável pelos especialistas, mas que está próxima à estagnação quando comparada aos 64% de dez anos atrás.
“Desenvolver internamente é muito mais eficiente do que contratar fora. Mas nem sempre é algo possível, porque a rotatividade aqui é muito maior; 60% dos funcionários continuam olhando o mercado, mesmo empregadas”, diz Paul Ferreira, professor da Fundação Dom Cabral. O motivo? O salário. Em um momento de crise, até mesmo uma pequena diferença no vencimento pode fazer a diferença e motivar uma troca.
Modelo esgotado
Os ventos de mudança não poderiam vir numa hora melhor. Os gestores definem o momento atual como uma tempestade perfeita, com o agrupamento simultâneo de diversas crises. Primeiro, a crise da saúde, que já deixou cerca de 600 mil mortos no Brasil e alterou profundamente as formas de trabalho, convívio, consumo e relacionamento dentro de toda a sociedade. A isso se soma o desastre econômico gerado pelo coronavírus: queda de 4,1% no PIB de 2020, inflação batendo na casa dos dois dígitos e mais de 14 milhões de desempregados. Como se já não fosse o bastante, explodem as reivindicações por igualdade racial, de gênero e sexual, renovadas desde o chocante assassinato do negro americano George Floyd, no ano passado – e evidenciadas por aqui no Brasil em episódios recentes, como a polêmica foto que mostra os funcionários de gestoras de investimento, com baixíssima presença de negros e mulheres. (se possível, colocar aqui link para matéria sobre o caso e talvez a foto, se for possível, ou alguma imagem dos protestos aqui no Brasil)
Juntar tudo isso equivale a riscar um fósforo dentro de um barril de pólvora. O barril, no caso, é um ambiente de trabalho visto por muitos como desgastante, pouco satisfatório e com cargas excessivas de estresse. Mark Schmit, especialista americano em RH, diz que “fazer mais com menos” – o grande paradigma da maior parte das empresas ao longo da última década – significa na verdade demandas que excedem o limite e drenam a energia necessária para que as pessoas atinjam seu potencial. “E ainda somos atingidos 24 horas por dia, sete dias por semana, por uma enxurrada de informações que não nos deixa desconectar. Nunca trabalhamos tantas horas e com tão pouco tempo de descanso”, defende.
Esse ambiente de trabalho tóxico está cobrando seu preço. Um levantamento do Fórum Econômico Mundial mostra que o número de mortes relacionadas a estresse, más práticas de gestão de pessoas e abusos no trabalho estão subindo no mundo todo – só na China, mais de 1 milhão de pessoas por ano morre devido a esses fatores. Cerca de 80% dos empregados se mostram pouco engajados com o trabalho. “É o momento de esgotamento de um modelo. A pandemia exacerbou essa demanda por mudanças ao permitir às pessoas em home office deixarem de lado aquela fantasia, aquela máscara tradicional do crachá, e começarem a ser elas mesmas”, afirma Luciana Ferreira, professora da Fundação Dom Cabral. Diante desse quadro, não surpreende que Bem-Estar tenha sido a principal tendência apontada pela consultoria Deloitte em seu relatório sobre capital humano.
Barreiras para derrubar
Aqui no Brasil, essa nova tendência não chega de uma vez só, é claro. Ela começou por empresas dotadas de um perfil de stakeholders mais ativos e um grau mais elevado de maturidade. Essas companhias se tornam benchmark – como as que estão presentes no anuário Época Negócios 360º – e espalham seu exemplo mercado afora, tendo então suas iniciativas servindo de exemplo para as demais.
Essas iniciativas mostram que a humanização normalmente é um processo que envolve muitas, mas muitas trocas entre os executivos e o resto do time – e daí a importância da abertura de mais canais de comunicação. “Para criar práticas e sistemas que sejam mais aderentes aos perfis e as necessidades atuais do colaborador, não existe uma outra saída que não seja conversar, entender como foi esse período de pandemia, o que funcionou, o que deu errado e aos poucos gerar aprendizados para o novo dia a dia”, diz Luciana. “É daí que sairão projetos concretos para os times e programas de desenvolvimentos, para que líderes e gestores possam demonstrar empatia, compaixão, olhar as necessidades do colaborador e se mostrarem disponíveis, especialmente com tempo e atenção”, completa.
No entanto, não faltam barreiras para criar esses processos. A própria crise financeira é uma delas, porque existe um custo inicial de implantação de iniciativas como a participação dos funcionários na definição das metas, por exemplo. E, como diz o ditado, em momentos de “farinha pouca, meu pirão primeiro”. A resistência a mudanças e novos investimentos tende, portanto, a ser maior em cenários como o atual.
“Mas já no médio prazo isso se transforma em benefícios decorrentes dessa humanização, que podem ser apropriados pela empresa”, defende a professora da Dom Cabral. São benefícios que podem chegar até a última linha do balanço: estudos da consultoria McKinsey, por exemplo, mostram que empresas com maior diversidade têm mais chance de terem lucro. Nos EUA, em média, cada 10% de elevação no índice de diversidade racial tende a aumentar o rendimento financeiro da companhia em quase 1%.
Outro problema sério é a dificuldade que algumas companhias ainda têm de levantar a bandeira da diversidade e inclusão. “Como é um tema quase ativista, tem empresa com medo de ficar mal na fita, por assim dizer, na hora que tiver que exibir seus problemas”, diz Luciana. Em um terreno tão minado, até do ponto de vista político, a tendência corporativa tem sido planejar minuciosamente os passos nessa área – o quanto pretende se envolver, como irá fazer isso e qual o grau de adesão – antes da adoção de medidas concretas. Isso tem elevado nos últimos meses a demanda por mapeamentos étnicos, de gênero e sexuais, para que as corporações possam mapear o tamanho de seus esqueletos no armário antes de colocá-los para fora.
Mesmo internamente, esse não é um tema fácil. Dirceu Gardel, CEO da gestora de score de crédito Boa Vista, diz que “como em muitas empresas, temos gerações de profissionais muito diferentes, então existe um desequilíbrio sobre a discussão destas temáticas. Um grande exemplo disto são os vieses inconscientes”, diz ele. “Não podemos dizer que somos diversos e inclusivos se, numa reunião, alguém tem uma fala racista ou sexista. Precisamos ter um equilíbrio deste conhecimento para que todos tenham consciência do impacto dessas palavras”, conclui.
Mesmo medidas que tentam tornar as empresas mais humanas podem gerar problemas. Durante a pandemia, empresas americanas como Facebook, Twitter e Salesforce resolver conceder jornadas menores e mais dias de folga para os funcionários que tinham filhos pequenos isolados em casa, sem poder ir à escola. A medida, humanitária, sem dúvida, acabou por despertar a ira de quem não estava no perfil beneficiado. “Isso mostra que, se não for algo feito com cuidado, mesmo medidas aparentemente justas podem acabar criando uma sensação de injustiça que destrói qualquer clima organizacional”, explica Luciana. Após a polêmica, a maior parte das empresas envolvidas no imbróglio acabou mantendo o benefício – e incorporando dias extras às férias de quem não tinha filhos em casa.
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A saída para evitar situações desse tipo é sempre alinhar as ações de humanização com o posicionamento estratégico da empresa, mostrando exatamente aos executivos e funcionários o que será feito, de que modo as novidades serão implantadas, como elas conversam com o objetivo da companhia e sobre seus potenciais retornos positivos e negativos. Caso esse pacote não fique claro para todos, é grande a chance de que exatamente as mudanças sejam apontadas como as culpadas, caso haja os resultados demorem para aparecer. É a velha história do “para que formos inventar isso” ou “isso só está nos trazendo problemas”, que pode acabar até mesmo jogando fora toda a bagagem de conhecimento acumulada durante a experiência. “Voltar para o velho normal é o grande risco”, alerta Luciana. “Nenhuma mudança é um processo fácil, mas essas nunca foram tão necessárias como hoje. É hora de as empresas deixarem as pessoas florescerem”.
Fonte: “Época Negócios”, 07/10/2021
Foto: Pexels