Tanto o governo fez que acabou forçando os estados mais endividados a recorrerem ao Supremo para fazer valer os termos das Leis Complementares 148, de 2014, e 151, de 2015. Apesar de a lei 148 ter se originado no Executivo, este parece ter se arrependido de levar a cabo sua implementação, especialmente no que se refere ao disposto no artigo 3º, que prevê a concessão de “descontos sobre os saldos devedores dos contratos” (grifo nosso) de refinanciamento das dívidas em causa. Diante disso, criou-se mais uma grande confusão do atual governo que provoca efeitos danosos ao país.
Por trás dessas leis, havia o fracasso do arranjo que se fez no fim dos anos 90 para equacionar as elevadas dívidas estaduais da época. Com os estados atolados em dívidas sempre mais caras que as da União, esta assumiu boa parte delas e introduziu um mecanismo eficaz de cobrança das respectivas prestações, determinando ainda que qualquer novo endividamento passasse antes pelo crivo do Ministério da Fazenda.
Só que, passados alguns anos, viu-se que o reescalonamento acordado pelas partes, implicando o expressivo comprometimento de até 15% das receitas estaduais, se tornara, em que pese tudo isso, insustentável, pois, dadas as demais condições, o montante a ser pago até o fim dos 30 anos de prazo do refinanciamento não cobriria a dívida originalmente contraída pelas administrações estaduais, exigindo a assunção de nova dívida residual. Daí a surpreendente constatação de que a dívida estadual total do início do processo, teria subido absurdamente em 2014, mesmo tendo amortizado um elevado montante ao longo desse período.
Para lidar com essa situação, a União, no que virou a Lei 148, propôs ao Congresso conceder os descontos sobre os saldos devedores acima salientados, e tomando o dia 1° de janeiro de 2013 como nova data de corte. A partir daí os saldos passariam a ser atualizados pela menor variação mensal na comparação IPCA + 4% e taxa Selic, condição mais favorável que a original. Só que o equacionamento do citado reescalonamento dependeria, ainda, do tamanho do desconto aplicado na nova data de corte. Haveria um valor tal que dispensaria a assunção de uma dívida residual, variando caso a caso. Mas o governo pareceu não mais disposto a implementar a lei 148, e o Congresso reagiu editando a lei 151, que estabeleceu o prazo-limite de 1º de janeiro de 2016 para que isso ocorresse.
Nesse ínterim, ocorreu a forte queda na arrecadação de tributos decorrente da mais profunda recessão de nossa história, por sua vez associada inteiramente a erros governamentais. Assim, antes de qualquer implementação da lei 148, começou a faltar recursos em vários estados inclusive para pagar despesas obrigatórias e muito rígidas, como pessoal e serviço da dívida, aparecendo gigantescos buracos financeiros em estados com a importância do Rio de Janeiro, em preparo para a Olimpíada de 2016, que sofreu ainda o efeito da queda da receita de royalties de petróleo, altamente relevantes para o fechamento de suas contas. Dessa forma, agregou-se um segundo e gravíssimo problema nas contas estaduais, ainda hoje à busca de solução. Enquanto isso, a União acionava o Banco Central para, sem alarde, cobrir seu gigantesco déficit de R$ 117 bilhões em 2015, largando os estados à própria sorte. Hoje, as notícias diárias sobre o caos nos serviços cariocas causam grande preocupação. Mais adiante, os demais estados tenderão, sem uma solução adequada, a cair um a um no precipício. A partir daí, começaram a surgir pedidos de liminar de parte de vários estados, junto ao Supremo, para suspender o pagamento do serviço da dívida sem que a União aplicasse qualquer punição aos impetrantes.
Dessa forma, se as liminares forem confirmadas, existe o temor de que, nas condições estabelecidas no artigo 3º da lei 148, haja uma transferência expressiva de dívida do conjunto dos estados para a União. Se, por outro lado, houver ganho de causa ao governo, este, conforme já anunciado, aplicará um desconto insuficiente para equacionar estruturalmente a dívida renegociada com a grande maioria dos estados brasileiros, enquanto aumenta o colapso dos estados com maiores buracos financeiros, seguindo-se as demais administrações nessa escalada explosiva.
O ideal seria que o Supremo promovesse a conciliação desse conflito o mais rápido possível, buscando um desconto intermediário na nova data de corte que permita, simultaneamente, equacionar estruturalmente as dívidas estaduais e viabilizar o financiamento dos buracos financeiros do momento numa medida capaz de evitar o caos, mas sem retirar o estímulo à busca dos ajustes estruturais — principalmente na área de pessoal — capazes de evitar o agravamento dos problemas nos próximos anos. Por outro lado, em relação ao impasse atual, haverá mais recursos para a retomada dos investimentos estaduais, que são fundamentais para a retomada do crescimento do PIB e da arrecadação.
Fonte: O Globo, 25/04/2016.
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