A hiperinflação chegou a 2.616% na Venezuela em 2017. Desde 2012, a economia encolheu 35%. Mais de 82% dos venezuelanos vivem hoje abaixo da linha da pobreza — e três quartos da população emagreceram nos últimos anos quase 9 quilos por não ter o que comer. A desnutrição atinge 68% das crianças. Hospitais estão à míngua. Na falta de remédio, a doença grassa — de diabetes a hipertensão, de malária a aids. Crianças deixaram de ir à escola por causa da fome. A violência supera a registrada em qualquer outro país da região. Perseguição política, censura à imprensa, aparelhamento do Judiciário, fraudes eleitorais, corrupção, tortura, prisões arbitrárias, esfacelamento institucional — a Venezuela é um caso de manual de autodestruição. Como o outrora mais próspero e democrático país da América Latina chegou a tal descalabro? Decifrar o quebra-cabeça chavista é a proposta do jornalista Leonardo Coutinho no recém-lançado “Hugo Chávez. O Espectro”.
Como repórter da revista “Veja”, Coutinho acompanhou diversos episódios que definiram o bolivarianismo nas duas últimas décadas. Divide seu relato em sete capítulos, que pintam um quadro documentado, fidedigno e assustador da tragédia resultante do “socialismo do século xxi”. Para quem acompanhou as histórias isoladamente, o conjunto assombra. Hugo Chávez surge como uma espécie de ser diabólico, cujas marcas hediondas se espalham pelo continente e vão além dele. Suas pegadas estão na tramoia nuclear que uniu o Irã de Ahmadinejad à Argentina do casal Kirchner, no acobertamento de terroristas do Hezbollah e no assassinato do procurador Alberto Nisman. Estão na adoção, sob o incentivo de Fidel Castro, do narcotráfico como política de Estado para financiar o terror islâmico e para suprir os cartéis mexicanos que inundam os Estados Unidos de drogas. No apoio a movimentos cuja violência se espalhou da Bolívia à Espanha, contando entre suas vítimas até o antigo dono da companhia aérea do desastre da Chapecoense. No uso da estatal de petróleo para extrair os recursos da corrupção e das regalias desfrutadas por próceres do governo chavista. No obscurantismo que, ao rejeitar a realidade científica, levou Chávez a ignorar o próprio câncer — e seu sucessor, Nicolás Maduro, a crer ouvir o morto no canto de um passarinho.
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O excelente trabalho de reportagem documental de Coutinho padece de duas deficiências. A primeira é de ordem técnica. Ele faz parte de uma geração de repórteres criada em redações onde a preocupação com a qualidade do texto passou a ser secundária. Não se pode querer que economistas, estatísticos ou médicos sejam estilistas do idioma. De um jornalista, contudo, o mínimo a exigir seria uma revisão cuidadosa, para eliminar jargões — como “planta” (no sentido de fábrica ou usina) —, anglicismos — como “suporte” (no sentido de apoio) e “massivo” (no sentido de maciço) — e palavras inadequadas — como “escaramuça” (no sentido de arapuca ou cilada) e “aleijada de privilégios” (no sentido, supõe-se, de alijada). Nada disso, é claro, prejudica a fluidez da narrativa, a não ser para os ouvidos mais sensíveis.
A segunda deficiência foge ao escopo de um livro que se apresenta como reportagem. Trata-se, contudo, do maior enigma trazido pelo bolivarianismo.
Por que, com toda a tragédia, tanta gente ainda se encanta com Chávez e Maduro? O que leva setores expressivos da esquerda brasileira a defender a ditadura venezuelana?
Que fascínio macabro toma conta da mente de tanta gente que, de outro modo, aparenta ser tão inteligente? Como relevam a tirania, a associação com o terrorismo e o narcotráfico, a fome, a miséria, a violência e a destruição da Venezuela? Coutinho apenas dá uma pista da resposta logo no início do livro, quando narra um episódio que demonstra o desprezo de Chávez pela própria mãe. “O ressentimento é o que define o comportamento de Chávez e o que explica também parte de seus atos”, escreve. O diagnóstico, certeiro, talvez sirva também para definir seus acólitos. Tema para um próximo livro, menos investigativo e mais analítico.
Fonte: “Época”, 22/03/2018