SÃO PAULO – A pandemia de coronavírus colocou holofotes sobre a necessidade de gerenciar melhor recursos hospitalares — como enfermeiros, médicos intensivistas, médicos especializados, unidades de terapia intensiva (UTI). Mas algumas startups de saúde estão de olhos nos gargalos da saúde há anos.
Uma delas é a Laura. A healthtech atende mais de 40 instituições de saúde com sua inteligência artificial. A coleta e processamento de informações permite ajudar hospitais, secretarias municipais e operadoras de saúde a decidir qual paciente deve ter o atendimento priorizado e se seu acompanhamento será presencial ou virtual.
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Essa proposta atraiu a primeira captação externa para a Laura. A startup de saúde anunciou um aporte semente de R$ 10 milhões, que será usado para expansão nacional e internacional. O InfoMoney conversou com os fundadores da Laura para entender o modelo de negócio, os próximos passos depois do aporte e o cenário das healthtechs no Brasil.
Inteligência artificial para a saúde
A Laura foi criada por Christian Rocha, Hugo Morales e Jacson Fressatto. Fressato tem background em tecnologia e segurança. Sua relação com a área da saúde começou a partir de uma experiência pessoal, em 2010. A filha de Fressatto faleceu em uma UTI. “Levei para casa o incômodo de se o suficiente havia sido feito. O que a vitimou foram procedimentos tardios e a sepse [infecção generalizada]. Não são problemas exclusivos de hospitais públicos”, diz.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que a sepse é responsável por uma a cada cinco mortes no mundo. São 11 milhões de mortes anualmente, 85% delas ocorrendo em ambientes com poucos recursos. 27% das pessoas com sepse em hospitais, e 42% das pessoas especificamente com sepse nas UTIs, perderão a vida.
Fressatto começou a estudar sobre como melhorar esse quadro por meio da inteligência artificial. Ente 2012 e 2015, colocou recursos próprios para testar, homologar e colocar protótipos em hospitais. Os testes começaram efetivamente em 2016, após um investimento anjo de R$ 150 mil.
Fressatto conheceu Christian Rocha na mesma época. O cientista da computação tem um mestrado focado em inteligência artificial na saúde pela Universidade de Estrasburgo (França). “Queria participar de projetos de impacto, e foi aí que conheci o Jacson”, conta.
Hugo Morales se juntou ao time de fundadores para fornecer a visão dos médicos. O infectologista trabalhava com gestão de pacientes e via desperdício constante de tempo e desinformação nos prontuários. “Esse é um problema sistêmico, então também precisa de uma solução sistêmica. Conheci o Jacson e o Christian em um simpósio e me interessei pela ideia de mudar completamente o padrão de atendimento”, diz Morales.
“Plataformas que fornecem análises com base em inteligência artificial existem aos montes e serão commodity. Nosso diferencial está em levar para o operacional, usando metodologias como design thinking para colocar essa tecnologia na mão dos profissionais de saúde”, defende Fressatto.
A Laura atende mais de 40 hospitais, secretarias municipais e operadoras de saúde por meio de 10,7 milhões de atendimentos em seus quatro anos de operação. O objetivo é identificar pacientes com maior risco antecipadamente. “Nos hospitais, o paciente pode morrer em horas caso seu quadro piore e nada seja feito. Fora dos hospitais, pacientes com sintomas e sem acompanhamento podem acabar internados”, diz Rocha.
A Laura usa inteligência artificial para acompanhar informações e dizer em qual paciente focar a atenção nos hospitais. Fora deles, usuários podem falar com um robô de atendimento da Laura pelo aplicativo da startup ou pelo WhatsApp. A startup faz uma triagem e indica se o paciente precisa ir ao pronto-socorro, fazer uma consulta por telemedicina ou apenas ser acompanhado pelo robô.
A startup se conecta com prontuários eletrônicos e com interações dos pacientes com o robô para coletar dados e refinar seu sistema de suporte a decisões de saúde. “Toda essa interface é fornecida a médicos e enfermeiros para que eles guiem o próximo passo da equipe, automatizando a gestão do cuidado de pacientes”, diz Rocha. “A tecnologia não vem para substituir, mas para dar suporte à decisão. A decisão sempre será do médico”, reforça Fressatto.
A Laura é um software como um serviço (SaaS), cobrando uma mensalidade que varia de acordo com o número de vidas acompanhadas.
Segundo um estudo feito pela Laura com 54 mil pacientes, a taxa de internações caiu 10% e a taxa de mortalidade caiu 25%. A startup vai apresentar esses resultados em outubro deste ano no SAIL, simpósio em inteligência artificial para sistemas de saúde feito por universidades como Johns Hopkins e Harvard.
“Além de mais acesso, qualidade e segurança ao paciente, temos também um benefício de custo. As operadoras veem menor sinistralidade”, diz Morales. A Laura tem uma equipe de seis profissionais dedicados à elaboração de publicações científicas, entre epidemiologistas, biomédicos e engenheiros de computação e de aprendizado de máquina (machine learning).
Novo investimento, novas metas
O aporte semente de R$ 10 milhões foi liderado pelo fundo americano GAA Investments, que já investiu em startups brasileiras como Alana e Digibee. “Já tínhamos atingido o equilíbrio entre receitas e despesas, mas buscamos o investimento para acelerar nossa expansão. O fundo tem bastante conhecimento em escalar startups em estágio inicial, ajudando em tração e internacionalização. Resolvemos um problema global, então pretendemos nos projetar globalmente nos próximos cinco anos”, diz Rocha.
O primeiro piloto de expansão internacional deve acontecer ainda em 2021. A Laura está negociando a entrada de sua tecnologia em dois hospitais de Lima (Peru). “Ao validar benefícios clínicos e econômicos, poderemos expandir para o restante da América Latina”, afirma Morales.
O foco neste ano continua em levar a Laura para o resto do país, porém. A startup busca massificar sua adoção no Sudeste e expandir para Norte e Nordeste. A startup pretende expandir de 65 para 80 funcionários até o final do ano.
Em termos financeiros, o plano é chegar a mais de 80 instituições atendidas e triplicar o faturamento (alta de 200%). Em 2020, a alta havia sido de 250%.
O futuro da saúde (e das healthtechs)
Segundo Rocha, os hospitais foram aos poucos aceitando o uso da tecnologia em sua operação. “Existe um atraso em adoção de tecnologia nos hospitais – setores como bancos e indústrias estão mais digitalizados. Entre 2016 e 2018, apresentávamos a startup nos hospitais e achavam que a gente ia substituir o médico, que nossa proposta não ia ajudar.”
A situação melhorou a partir de 2019, na visão dos cofundadores. “O modelo era de fee for service [taxa por serviço]. Escutava-se não diminuir o tempo de internação ou o consumo de antibiótico porque isso gerava receita ao hospital, e as operadoras não aguentam. Vimos uma mudança para entregar valor ao paciente, porque o modelo anterior era insustentável”, afirma Morales. “Quanto mais você investe na qualidade de vida, antes ou depois de uma operação, melhor o aproveitamento de recursos e os resultados.”
A troca do modelo de taxa por serviço para um modelo de remuneração por melhor atendimento e prevenção de problemas mais graves é defendida por outras healthtechs brasileiras, como a de planos de saúde para empreendedores Sami.
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O segmento de saúde é o terceiro do país em número de startups. Existem 542 healthtechs no país, segundo dados da empresa de inovação Distrito. Mas as startups de saúde brasileiras ainda têm um longo caminho a percorrer no Brasil, segundo Rocha.
“O investimento em saúde bateu recorde global em 2020. Cada vez mais, a saúde será olhada como oportunidade de melhora”, diz. O investimento de capital de risco em healthtechs bateu recorde e chegou a US$ 14 bilhões em 2020, ante US$ 10 bilhões em 2019, segundo a consultoria Deloitte. “Porém, nenhuma das 200 healthtechs mais valiosas no mundo está na América Latina. Queremos mudar essa estatística.”
Fonte: “InfoMoney”, 20/05/2021
Foto: Ale Carnieri/Divulgação