A lista de textos jurídicos que você jamais lerá não para de crescer. Há livros verdadeiramente obrigatórios sendo escritos nesse momento; artigos brilhantes com os quais você nunca terá contato, ou que não lerá por preguiça, por falta de tempo, porque estava no WhatsApp. Em 2013, havia, no Brasil, 81 mestrados; 31 doutorados; um doutorado profissional. Some a isso o contingente de mestres e doutores já existentes, todos supostamente produzindo, e os números não mentem: ser um acadêmico ou profissional do direito, nos dias de hoje, é, na maior parte do tempo, não ler textos jurídicos.
O direito, no entanto, vive da celebração da erudição. Daí que, a cada dia, torna-se mais estratégico, ao jurista, falar sobre mais e mais textos jurídicos que nunca lerá. Seu professor faz isso; o professor dele também fazia; Pontes de Miranda cansou de fazer; mas já é hora de trazer alguma técnica a esta arte.
Todos os textos jurídicos lidos são lidos de modo parecido; mas os livros e artigos não lidos são ignorados cada um à sua maneira. Numa taxonomia singela, há (I) os livros que você leu, mas esqueceu; (II) os livros que você deveria ter lido; (III) os livros que é quase como se você tivesse lido.
Os (I) livros que você leu, mas esqueceu, ou que leu, ou do que leu, habitam uma penumbra mnemônica. No terceiro período, o professor Marlan obrigou minha turma na UERJ a ler um livro sobre negócio jurídico escrito por um desembargador baiano. Sei que li o livro, mas só lembro disso. Aliás, sequer sei se li. Veja você a densidade do fog.
Os (II) livros que você deveria ter lido são um animal diferente. Você já leu “Law’s empire”, do Dworkin? A “Teoria dos direitos fundamentais”, de Robert Alexy? Pelo menos a “Teoria pura do direito”, de Kelsen? Não? Mas que vergonha. Vergonha que, como tantas, pouca gente confessa, mas muita gente pratica. Prossigamos.
Há os (III) livros que é quase como se você tivesse lido. Você pode até não ter lido “A model of rules”, texto incluído em “Levando os direitos a sério”, de Dworkin, mas é como se tivesse. Você sabe que princípios jurídicos, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso; sabe que os conflitos entre princípios são resolvidos pela técnica da ponderação. Falando em Dworkin, eu não li um livro de seu antecessor espiritual, Lon Fuller – “O caso dos exploradores de cavernas”. Mas posso afirmar que o texto trata de um dilema ético, até hoje presente talvez em outro sentido – comer ou não comer pessoas – , envolvendo, é claro, exploradores de cavernas.
Mas, afinal, como falar sobre textos jurídicos que você nunca leu?
II – Estratégias
A seguir, cinco estratégias, testadas e aprovadas, ajudarão o jurista contemporâneo a comentar textos que ignora completamente, ou de que possui apenas uma vaga ideia.
(i) Escolha lados.
Em tempos de capturas epistêmicas de lado a lado; em tempos de câmaras de eco entre semelhantes, a verdade é que, a depender da sabedoria da sua escolha, você não precisará ler quase metade do que é produzido no direito brasileiro.
(ii) Ouça o galo cantar em bancas e seminários.
Seu professor vem usando essa estratégia há tempos; aprenda com os mestres. Basta pescar, com certa argúcia, a ideia de um texto, tal como apresentado ou comentado num seminário, numa banca, numa apresentação. Pronto: você já passa a ter uma noção do assunto, e, dependendo do contexto, ainda pode ser convidado a dar nota numa apresentação de tema que, até ali, ignorava completamente.
(iii) Force seu aluno a resumir o texto para você.
Você já se perguntou para onde vão todos aqueles fichamentos e resumos que seu professor lhe obriga a fazer? Você achava que era maldade? Que era algo relacionado a metodologia? Bom, pode ser tudo isso; mas seu professor pode estar apenas lhe obrigando a ler os livros que ele não está a fim de ler.
(iv) Comente apenas o título.
Essa estratégia é clássica, podendo ser usada por acadêmicos e operadores do direito em geral: se não leu o que tem dentro, faça uma boa análise da capa, com ênfase no título. Mas atenção: há títulos enganadores. “Carnaval tributário”, de Alfredo Augusto Becker, não trata do regime fiscal das escolas de samba.
Em bancas, a estratégia de “comentar o título” pode ser associada, por avaliadores ocupados, à técnica do “li com tanta atenção sua tese que encontrei dezenas de errinhos formais insignificantes e que serão agora tediosamente destacados em público”. Afinal, o que mais se espera de um professor universitário do que uma boa revisão pública de ortografia, não é mesmo?
(v) Desloque o que você não leu para as notas de rodapé.
Essa estratégia é o paroxismo da não-leitura: você mostra aos seus leitores os textos que você não leu, mas que gostaria ou deveria ter lido. É claro que eles não sabem disso, e é por isso que você escondeu as referências no rodapé. Algum dia, também o seu texto será não-lido; nesse dia, as notas de rodapé comporão uma metalista de textos ignorados. Uma coisa toda meio borgiana.
III – Encerramento
Ser lido é fruto de uma série de fatores. Geografia, contatos, conchavos da editora, gosto da época, uso da internet, gênero, idade, posição social; além, é claro, da qualidade do texto. Ou seja: textos jurídicos invisíveis não são necessariamente ruins; textos célebres não são, apenas por isso, bons.
O sociólogo Pierre Bayard, em “Como falar sobre livros que você não leu” (2007), livro do qual tirei o título deste artigo (e que você não sabia até aqui, pois também não leu Bayard – aliás, eu também não), sugere que busquemos conhecer sobre o maior número de livros possíveis, até criarmos uma cultura literária compartilhada. De acordo com ele, esta cultura compartida vem a calhar diante do fato de que, hoje, nossas livrarias individuais se cruzam cada vez menos.
Sem ironias: ler tudo o que se produz no direito é impossível. É importante buscar o conhecimento possível, sabendo que não há curadoria confiável. Devemos sinceramente conhecer tudo o que der, e, é claro, ignorar muito do que se produz. Até porque conhecer é, dentro de um espírito de abertura, ignorar muito, e esquecer outro tanto.
Fonte: “Amo Direito”, 29 de setembro de 2016.
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