O financiamento do programa de transferência social do governo, rebatizado como Renda Cidadã, tem sido objeto de muita controvérsia desde que o presidente Bolsonaro vetou a utilização de recursos de outros programas, como abono salarial e salário-família.
Depois de várias tentativas de encontrar outras fontes de financiamento, na segunda-feira o governo anunciou que o Renda Cidadã seria financiado com recursos do Fundeb e de precatórios judiciais. A repercussão foi péssima entre os analistas e a sociedade de modo geral, algo bastante compreensível diante do conteúdo desastroso da ideia.
Começando pelo Fundeb, como a complementação do governo federal ao Fundo está fora do teto de gastos, a utilização de uma parcela desses recursos para financiar um programa de transferência de renda significaria na prática uma maneira disfarçada de descumprir o teto. O argumento de que esses recursos já seriam excluídos do limite de gastos não é satisfatório. Afinal, o objetivo dessa excepcionalização seria descumprido com uma mudança na destinação dos recursos do Fundeb para um programa de transferência de renda, contrariando frontalmente o princípio fundamental de transparência que motivou a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016.
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Já a ideia de estabelecer um limite de 2% da Receita Corrente Líquida para o pagamento dos precatórios da União e utilizar os recursos excedentes para financiar o Renda Cidadã é tão absurda que não deveria ter sido sequer cogitada. Trata-se de uma combinação de pedalada com calote, além de não fornecer uma fonte estável de recursos para um programa permanente de proteção social.
Um argumento em favor dessa ideia tem sido que os estados já adotam a prática de postergar o pagamento de precatórios. No entanto, o Supremo Tribunal Federal já julgou inconstitucional o estabelecimento de limite para o pagamento de precatórios, tendo sido determinado que a dívida acumulada precisa ser saldada até 2024.
Outro argumento duvidoso que tem sido levantado em defesa da proposta seria que o pagamento de precatórios da União aumentou muito nos últimos anos, subindo de cerca de R$ 10 bilhões no governo Dilma para algo em torno de R$ 55 bilhões atualmente. Embora esse dado mereça uma análise mais aprofundada, isso certamente não justifica o estabelecimento de um limite arbitrário para os pagamentos.
Como mostra o Programa de Responsabilidade Social (disponível aqui), que comentei na coluna passada, é possível compatibilizar uma proteção social robusta com a delicada situação fiscal em que o país se encontra.
O redesenho da política social pressupõe a fusão do Bolsa Família com programas de desenho antiquado e baixa capacidade de redução de pobreza. Somando ao Bolsa Família o que é gasto atualmente com o abono salarial, salário-família e seguro-defeso, temos um orçamento inicial de R$ 57 bilhões, que poderia ajudar a combater a pobreza imediatamente, enquanto o País avança em outras reformas, que liberarão recursos fiscais e permitirão ampliar o Programa.
A fusão de programas sociais se justifica não somente por razões fiscais, mas também pela necessidade de aumentar a efetividade da proteção aos mais vulneráveis. Existem amplas evidências de que, ao contrário do Bolsa Família, o abono salarial e o salário-família têm capacidade praticamente nula de reduzir a pobreza e a desigualdade. Já o seguro-defeso enfrenta profundas dificuldades de implementação, pois não existem instrumentos adequados para a verificação da condição de pescador artesanal.
Além de manter a cobertura à parcela mais carente dos beneficiários atuais, este redesenho permitiria alcançar pessoas hoje desprotegidas, como os trabalhadores informais. Vale lembrar que o bem-sucedido Bolsa Família nasceu da fusão de diversos programas assistenciais, em 2003.
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Essa discussão remete ao ponto fundamental de que é preciso ir além da discussão sobre financiamento. Até o presente momento, pouco se sabe sobre o desenho do Renda Cidadã, seja no que diz respeito aos valores dos benefícios e número de beneficiários, como também aspectos relativos aos incentivos ao trabalho e proteção dos informais.
Diante do fim do auxílio emergencial em dezembro, é urgente discutir este tema em mais detalhe. O Programa de Responsabilidade Social mostra que é grande o potencial de aprimorar a proteção social brasileira sem colocar em risco a situação das contas públicas.
Fonte: “Blog do Ibre”, 05/10/2020