O governo Lula ensaiou criar um poder paralelo ao Itamaraty na política externa. Nomeou um “quadro partidário” para a Assessoria Especial da Presidência da República para Relações Internacionais. O PT gostou da experiência e vai propor um Conselho Nacional de Política Externa, oficial, para pressionar e fiscalizar a política externa.
Burocracias são regidas pela inércia: difíceis de pôr em movimento, de parar e de mudar de rumo. Os mais marcantes mastodontes burocráticos na administração pública brasileira são os militares e os diplomatas.
Os militares entraram em movimento em 1922 e não pararam até 1964. Davam-se o direito de aprovar ou mudar os governos. Em 64 tomaram o poder e de lá só saíram em 1985. Desde então tentamos resolver os problemas da supremacia civil no Brasil. Não tem sido fácil. Não ajudou nem a sequência de ministros da Defesa desprestigiados, até o que acha que a melhor maneira de controlar os militares é se fantasiar de milico.
O Itamaraty nunca dominou o Brasil – mas é o Ministério que tem maior capilaridade no governo, mantendo diplomatas em todos os Ministérios e outros órgãos acessórios. Porém sempre fez o possível, sem tanques nem canhões, para manter sua autonomia e fazer mais ou menos o que bem entendia, independentemente do governo da hora.
De vez em quando era preciso dar os anéis para não perder os dedos. Deu os anéis durante o regime militar, mas conseguiu não ter nenhum coronel “lá dentro”, nem na Divisão de Segurança e Informações. Preferiu sacrificar diplomatas para fazerem as coisas de que ninguém gostava a deixar entrar um militar. Expulsou Vinicius de Moraes e cortou a carreira de um estudante aprovado no concurso do Instituto Rio Branco antes mesmo de ele começar o curso.
Presidentes podiam nomear o ministro que quisessem, diplomata ou não, mas se era “de fora” a burocracia “da casa” sempre tratava de lhe impor limites com punhos de renda. Quando o ministro não era “da carreira”, sapecavam-lhe um secretário-geral cuja principal tarefa era não deixar que “saísse da linha”. Os oficiais de gabinete que cercavam o ministro cuidavam de tornar sua estada agradável, prazerosa e quase sempre inócua. Quando o ministro era “da casa”, não era necessário gente forte nos cargos de baixo. Linhagens familiares perpetuavam-se no Itamaraty: filhos, netos, bisnetos.
O governo Lula trouxe uma mudança curiosa: a combinação de um ministro da casa que gostava de fazer as mesmas coisas que o presidente, dando a impressão de que havia uma grande discrepância entre a política do Ministério e a do governo. Não havia. A maioria dos diplomatas apoiava a política porque em burocracias fechadas (a única porta de entrada é o concurso de admissão, sem entrada lateral) a primeira regra que os novos aprendem é que manda quem pode e obedece quem tem juízo.
O PT gostou dessa festa da coincidência entre os gostos do ministro e os desejos do presidente e resolveu tentar institucionalizar esse esquema, criando um Conselho Nacional de Política Externa (oficial, repita-se) para assessorar e pressionar o Itamaraty.
Se você gosta da política externa, pode tirar o cavalo da chuva. Se esse conselho for criado, ela vai piorar muito. Se você não gosta, aí, então, nem se fala.
Política externa, mal ou bem, tem de ter alguma continuidade e alguma previsibilidade. No momento em que se coloca a possibilidade da turba mandando em política externa, estamos em maus lençóis. Pode ser que agora apareça uma coisa que eu pensei que tivesse desaparecido durante o governo Lula: a militância externa.
Achei que Lula tinha acabado com a máquina petista, mas não. Ela estava só dormente porque não conseguia competir com o carisma e a liderança pessoal de Lula. No momento em que Lula não mais poderá continuar, sentado que está na cadeira terminal de presidente em segundo mandato, a máquina partidária começa suas tentativas de se apoderar do poder – e o tal conselho é um caminho perigoso para isso.
Numa democracia liberal (e ainda estamos nela) é perfeitamente legítimo os governantes presumirem que, se alguém não expressa o seu interesse, esse alguém não tem interesse. E um dos fatos mais marcantes da política externa brasileira foi que o quase-monopólio que o Itamaraty manobrou com muita competência (às vezes maior, às vezes menor) conseguiu impedir a criação de grupos fortes interessados em política externa. Era muito difícil influenciar o Itamaraty no sentido de defender interesses particulares, mesmo quando estes coincidiam com os interesses do País.
Em outras palavras: o empresariado brasileiro acomodou-se, indo sempre a reboque da política do Itamaraty. Nunca tentou seriamente criar mecanismos de influenciação para que uma parte da política externa pudesse ser feita profissionalmente e outra pudesse ser feita a partir de interesses legítimos de grupos que exportam, investem e atuam internacionalmente.
Nunca tivemos no Brasil uma instituição como o Council on Foreign Relations, que expressa, com toda a cortesia que se espera, é claro, os interesses da elite norte-americana em matéria de política externa.
Ainda não é tarde demais. O conselho do PT ainda não foi criado, mas ou quem tem interesses faz alguma coisa ou esta rodada será perdida, e com grandes prejuízos.
Será que o barão vai ter de enfrentar a turba sozinho?
P. S.: Se você quiser se aprofundar mais sobre o assunto, pode ler o meu artigo Política exterior brasileña y el mito del barón, na revista Foro Internacional, 93 (vol. XXIV, número 1, Julio-Septiembre 1983, pp. 1-20): México, DF, México.
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