Se é verdade que a Constituição não deve ser vista como um pacto suicida, uma de suas principais funções é impedir que em momentos de crise nos deixemos levar pela miopia, oportunismo e paixões circunstanciais, abdicando dos compromissos essenciais e objetivos de longo prazo que constituem a própria ideia de nação.
Ao completar 29 anos, nosso pacto constitucional, que estabeleceu entre seus objetivos fundamentais “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, tem sido objeto de insistentes ofensivas, que questionam tanto sua eficácia social, como sua viabilidade econômica.
Neste contexto de ceticismo constitucional, dois engenhosos trabalhos recentemente publicados merecem especial atenção. Em “Equilíbrio fiscal na complexa democracia brasileira”, Luiz Guilherme Schymura, diretor do IBRE/FGV, debruça-se sobre o argumento de que a deterioração das contas públicas seria uma consequência do “excesso de direitos outorgados na Magna-Carta”.
Sua estratégia foi partir das despesas federais em 2016, de 19,7% do PIB, e descontar todas as despesas que não foram expressamente criadas por vinculações constitucionais. O resultado foi que as despesas decorrentes de direitos constitucionais (portanto vinculantes) se resumiriam a 13,8% do PIB. Apenas 1,1% mais do que os gastos em 1988. Em síntese, conclui que seria um “exagero” responsabilizar os direitos constitucionais pela escalada nos gastos públicos. Esse excedente, pondera, decorre da própria dinâmica da democracia, assim como, do patrimonialismo brasileiro.
Em “Democracia e redução da desigualdade econômica no Brasil: a inclusão dos outsiders”, Marta Arretche, professora da USP, desafia, por sua vez, a percepção de que os direitos sociais incorporados pela Constituição pouco contribuíram para a melhoria das condições de vida e inclusive a redução das desigualdades. Sua premissa é que a Constituição de 1988 rompeu com o modelo excludente de política social estabelecido por Vargas, que apenas beneficiava os trabalhadores urbanos inseridos no mercado formal de trabalho.
Ao estabelecer direitos universais à educação, saúde e aposentadoria, inclusive aos trabalhadores rurais, não só incluiu os “outsiders” no pacto social, como favoreceu uma convergência das principais forças políticas em torno da implementação de instituições e políticas públicas voltadas à realização desses direitos. Seus dados, embora reconheçam a persistência de profundas desigualdades e o alto grau de concentração de renda no topo da pirâmide, apontam que os mais pobres foram “beneficiados por ganhos de renda proporcionalmente superiores aos mais ricos”.
Da mesma forma, muitos serviços antes apenas acessíveis aos privilegiados também passaram a ser acessíveis aos mais pobres.Evidente que ainda estamos longe de alcançar os objetivos estabelecidos pelo Pacto de 1988. A questão que se coloca, porém, é se neste momento de crise devemos reafirmar nosso compromisso constitucional, nos concentrar na remoção dos verdadeiros obstáculos à “construção de uma sociedade mais justa”, ou simples e cinicamente abandonar o projeto de nação concebido pela Constituição?
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 14/10/2017.
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