O debate estrepitoso sobre as novas medidas do governo para impulsionar o consumo e o crescimento no Brasil está gerando uma enorme confusão. Repete-se, incansavelmente, o bordão de que o modelo de crescimento por meio dos estímulos ao crédito e ao consumo se exauriu. O argumento que fundamenta a tese é que as famílias brasileiras já estão excessivamente endividadas, que o comprometimento da renda é demasiado alto. Por isso, o governo não conseguirá alcançar o seu objetivo de sustentar o crescimento da economia. Será?
Primeiramente, de qual nível de crescimento falam? De 3%? De 4%? De 4,5%? O governo já reconheceu que a economia brasileira não será capaz de se expandir no ritmo de 4,5% em 2012, sobretudo por causa do agravamento da crise externa. Alcançar 4% de crescimento este ano também está bastante difícil – os dados e os indicadores de atividade nos primeiros meses do ano revelaram as fragilidades da economia brasileira. Mas será possível que não conseguiremos crescer nem 3%, como vêm dizendo alguns analistas? O suposto esgotamento do consumo é tão grave e iminente assim? Com a renda do trabalhador crescendo? Com a taxa de desemprego historicamente baixa que temos?
A ideia de que o consumo se exauriu parte de duas premissas. A primeira é que o endividamento das famílias já é alto porque a razão entre o estoque das obrigações financeiras e a renda anualizada ultrapassa os 40%. Esta é uma forma equivocada de medir o grau de endividamento. A dívida é um estoque, enquanto a renda é um fluxo. A forma correta de medir o grau de endividamento, o tamanho da alavancagem financeira do consumidor, é a razão entre a dívida e os ativos das famílias brasileiras, a sua riqueza. Infelizmente, não dispomos deste dado. Na ausência dele, temos de fazer como os outros países que tampouco o têm e usar o PIB como proxy para os ativos da economia. O PIB é o fluxo de bens e serviços produzidos anualmente. Porém, como para produzir algo é preciso ter um estoque de “ativos” – máquinas, equipamentos, imóveis, força de trabalho – o PIB capta uma parte da riqueza gerada num determinado horizonte de tempo.
A dívida das famílias brasileiras como proporção do PIB é de uns 20%. A das famílias coreanas é de 87,5% do PIB. Na África do Sul é de 45%, enquanto na Polônia é de uns 40%. Nos EUA, o grau de endividamento das famílias atingiu um pico de mais de 100% antes da crise, e, hoje, com o processo de desalavancagem impulsionado pelo governo, com a redução drástica dos juros para sustentar a atividade em meio à crise, este número caiu para 90%, mesmo com a recessão de 2009. É verdade que uma parte desta redução de dívidas resultou, também, de moratórias, sobretudo no setor imobiliário. Mas lá, o problema, o ponto de partida, era de magnitude muito superior ao nosso.
Nos EUA, o ciclo da dívida – o tempo que as famílias levam para higienizar os seus balanços – foi substancialmente acelerado por uma forte queda nas taxas de juros. Mesmo com um prazo médio da dívida muito maior do que o brasileiro, como, aliás, é o caso de outros países, emergentes e maduros. Por aqui, com a dívida imobiliária correspondendo a apenas 5% do PIB, e diante da ausência de mercados de crédito de longo prazo para as famílias, a duração média do endividamento é muito menor. É possível concluir, portanto, que, com os juros em queda, o “ciclo da dívida” brasileiro será curto e a capacidade de limpar os balanços que geraram a alta recente da inadimplência é maior. O espaço para consumir mais à frente, portanto, não se esgotou.
A segunda constatação que sustenta a tese da exaustão é o comprometimento da renda das famílias brasileiras com as obrigações financeiras contraídas – o chamado serviço da dívida (amortizações e pagamentos de juros). Estão corretos os que dizem que 22% de renda comprometida é um nível alto e perigoso. Contudo, a queda dos juros, a “normalização” que o governo está empenhado em executar, também traduzir-se-á num alívio de caixa, numa queda do serviço da dívida. A possibilidade de refinanciar certos empréstimos com juros mais baixos é, também, um fator de sustentação do consumo. Portanto, parece possível, sim, crescer 3% este ano, com uma forte aceleração da atividade no segundo semestre.
Aqui se exaurem os contrapontos à tese da exaustão e minha defesa das políticas de sustentação do consumo do governo brasileiro. Para que cresçamos mais do que 3% de forma sustentável, isto é, sem gerar inflação ascendente no médio prazo, será necessário, em algum momento, que a economia volte a investir. Será preciso que retornemos à trajetória que caracterizou o período entre 2003 e 2011, quando o investimento aumentou de 15,7% do PIB para 20,7%. Sim, o investimento aumentou tudo isso, mais de 30%, ao longo destes anos! Em parte porque as condições externas ajudaram durante boa parte deste período, ao contrário do que ocorreu nos anos FHC.
Será muito difícil retornar a isso, sobretudo com um quadro externo que continua em franca tendência de deterioração e com os gargalos que temos na infraestrutura, com a alta carga tributária que penaliza as empresas, com as ineficiências energéticas, e por aí vai. A lista do dever de casa é longa. Mas esta é outra história. Uma história que não deve ser confundida com a tentativa do governo de sustentar o consumo para apoiar a atividade brasileira em meio ao gravíssimo cenário internacional. Embaralhar este debate, lhe dar um contorno ideológico apenas para marcar uma posição, não resolve o problema da exaustão. E só aumenta a confusão.
Fonte: O Globo, 24/05/2012
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