Ainda não são 8 horas da manhã. A mulher bonita e elegante de cabelos brancos à minha frente argumenta com o máximo de convicção que seu jeito delicado permite: “Isto aqui não é e nunca será a história de uma pessoa. Não acredito nisso e não é mais disso que o Brasil necessita. O país precisa do povo inteiro consciente do que é capaz”, diz a arquiteta Regina Celi de Albuquerque Machado Steurer, de 59 anos, enquanto mexe no anel, visivelmente desconfortável com a perspectiva de alguém escrever seu perfil. Estamos sentadas lado a lado, numa mesa gigante, cheia de ladrilhos coloridos e murais incompletos no mezanino de uma grande sala em L. De onde estamos dá para ver e ouvir crianças que se acomodam em pequenas mesas espalhadas aleatoriamente no térreo. É a segunda vez que nos encontramos na semana. A primeira foi para falar do Projeto Âncora, escola fundada por Regina e seu marido, Walter, morto em 2011. O Âncora foi eleito, em agosto, uma das 12 escolas mais inovadoras do mundo por um levantamento que rodou o globo, feito por educadores da Fundação Roberto Marinho e seus parceiros, Sesi Nacional e Instituto Inspirare. O levantamento virou uma série do Canal Futura, “Destino: educação – escolas inovadoras”, com 13 episódios, e um livro com o mesmo nome.
Os origens do Projeto Âncora
Como uma chácara construída por uma arquiteta que nunca trabalhou com educação se transforma em referência em aprendizado inovador? Apontam para Regina todas as respostas de alunos (no Âncora, chamados de educandos), professores (no Âncora, tutores), coordenadores e pais que trabalham como voluntários da escola, que atende gratuitamente 164 crianças de famílias de baixa renda. Traída por seus próprios pares, a mulher que não quer ser tema de um perfil concorda em contar como o embrião do Projeto Âncora começou a ser formado, há três décadas – quando ela ainda não imaginava que trabalharia com educação. “Não sei quando ele nasceu. Mas me recordo que me comprometi com ele na volta ao Brasil, no fim do mestrado”, diz ela.
Logo depois de se formar em arquitetura no Rio de Janeiro, Regina prestou um concurso e ganhou uma bolsa de estudos para fazer um mestrado em teologia na Bélgica. Nunca fora religiosa. A sugestão de concorrer para uma bolsa na área viera de um tio padre, com quem se correspondia. “A perspectiva de viver sozinha na Europa me pareceu a mais promissora do mundo. O tema do mestrado era o que menos importava”, diz.
Para sua surpresa, na Bélgica, Regina se apaixonou pelas aulas de história, antropologia e filosofia, pelos professores e pelos amigos que fez – pessoas dos lugares mais pobres do mundo que trabalhavam com religião, serviço social ou as duas coisas. “Ali descobri que eu, filha de militar, era uma ‘patricinha’”, diz ela.
Pouco mais de um mês para o término de seu curso, quando a sonhada viagem para conhecer os grandes monumentos da Europa estava prestes a acontecer, Regina deparou com a oportunidade de embarcar no pequeno avião que levaria seus colegas africanos de volta para casa. Evangeline, sua melhor amiga até hoje, a convenceu. “Venha comigo percorrer Ruanda e conhecer minha família. Daqui a dois meses um avião trará os estudantes e você de volta à Bélgica”, disse ela. O ano era 1982. Ruanda era o país mais pobre do continente mais pobre do mundo. “Minha falta de noção era tamanha que cheguei a Ruanda vestindo um conjunto de calça e tailleur branco, com sapatos, cinto e bolsa de couro verde feitos sob medida para mim”, conta. Logo que saiu do aeroporto, ela e a mala enorme que carregava foram colocados num caminhão aberto abarrotado de gente, que percorria ruas de terra. O pó levantado pelos pneus criava uma nuvem densa de poeira. “Na minha primeira noite em Ruanda, depois de usar pela primeira vez um banheiro sem privada, deitada embaixo de vigas de madeira por onde andavam ratos, chorei como nunca havia chorado antes”, diz. “Mas então olhei em volta para aquela gente que me recebeu com tanta alegria, e me senti pequena por dar tanta importância aos ratos e à falta de banheiro.” Foram dois meses de experiência intensa. Evangeline tinha família espalhada por todo o país e Regina explorou Ruanda como jamais fizera no Brasil. Ficou marcada pela força do espírito comunitário. “O que mais me impressionou foi que, apesar da extrema pobreza, ninguém passava fome”, diz. “As pessoas plantavam e trocavam entre si.”
Engajamento social e educação
Quando pisou no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, mais de dois anos depois de ter deixado o Brasil, prometeu a si mesma que não deixaria que “coisas supérfluas” a afastassem do que descobrira ser sua maior fonte de felicidade: trabalhar pelos mais pobres e ao lado deles. Logo percebeu que a forma de usar suas habilidades para ajudar era trabalhar com urbanização em áreas carentes. O Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, foi sua primeira parada. Trabalhou num projeto de reurbanização da comunidade. Por meio dos amigos da Bélgica soube do trabalho de Dom José Maria Pires, o Bispo Zumbi, primeiro negro a ocupar essa função na igreja brasileira. Escreveu para ele e foi chamada para ajudá-lo com comunidades pobres da Paraíba. Ali, Regina se aproximou de programas para as mulheres marginalizadas, para leprosos e para a população carcerária. “Entendi como os grupos mais vulneráveis estavam apartados da rede de benefícios sociais, e o reflexo disso em toda a cadeia social que os cercam: filhos, pais, vizinhos”, diz. “E também testemunhei como pequenas melhorias na comunidade produzem grandes mudanças nas pessoas e no espaço.” Sua experiência com arquitetura e serviços sociais a levaram a Bahia, Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal, sempre ao lado de comunidades carentes.
E como o engajamento social contribuiu para criar uma das escolas mais inovadoras do mundo? “Vi muito dinheiro e energia empregados em obras assistencialistas que prejudicam, pois provocam acomodação. O Bolsa Família, da forma como é distribuído hoje, tem esse efeito”, afirma. “Percebemos que, para ajudar a comunidade, tínhamos de investir em educação.”
Assim nasceu o Projeto Âncora, uma escola sem divisão por série nem faixa etária, em Cotia, interior de São Paulo. “Nossa ideia foi construir uma espécie de cidade educativa”, diz ela. “A diferença fundamental é que os cidadãos que usufruem e cuidam desse espaço têm entre 3 e 16 anos”, diz.
Estrutura de funcionamento e ensino
Quem entra na chácara repleta de verde nota de imediato um circo colorido no centro do espaço. “O circo é a nossa ágora grega, a praça onde os eventos da comunidade ocorrem”, diz Regina. Entre uma árvore e outra, há um parquinho de madeira, uma grande horta e algumas edificações baixas, como o estúdio de música, que se misturam à paisagem sem que ela deixe de parecer uma área verde. O espaço funciona como centro de educação infantil e local de atividades para crianças e adolescentes há 20 anos. Há cinco anos, ganhou autorização para funcionar também como escola. Oficialmente, o Âncora é um projeto social. Por isso, os filhos de professores e os da própria Regina não puderam estudar lá. Os assistentes sociais da prefeitura selecionam os alunos que podem ser admitidos.
A prioridade são crianças de famílias com renda de até três salários mínimos e moradoras da região. Quanto maior a situação de vulnerabilidade da família, maiores as chances de a criança ter uma vaga. Crianças de 3 a 16 anos estudam em período integral, das 7h15 da manhã às 16 horas, com conteúdos que equivalem à educação infantil até o final do fundamental, no 9º ano. Equivalem porque, na prática, não há divisão por idade e série. As crianças são separadas por nível de autonomia. Cada professor é tutor de 12 crianças. Um garoto de 9 anos pode estar no grupo de um de 12 anos se a maturidade que tem para cumprir os combinados for parecida.
Para entender como o processo de aprendizagem se dá, basta perguntar a qualquer criança já alfabetizada. “Cada um escolhe um sonho que quer realizar e começa a trabalhar nele”, diz Ana Carolina Santino, de 12 anos. Como assim? “A gente pesquisa e faz pequenos projetos para realizar o nosso sonho”, diz. “Quando chegamos pela manhã, montamos um roteiro com as atividades que nos levarão a concretizar o nosso projeto. O tutor aprova e começamos a trabalhar.”
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Durante esse percurso, o aluno é levado a estudar matemática, literatura portuguesa e brasileira, geografia, história, empreendedorismo, inglês. O tutor acompanha no dia a dia o progresso de cada um. A avaliação é constante e não há prova. Se um determinado conteúdo não se encaixa no projeto que está sendo feito, o tutor adiciona os assuntos que a criança tem de aprender no roteiro do dia. Se houver dificuldade de compreensão, o estudante é encaminhado ao especialista da área.
Os sonhos no Âncora são individuais, mas muitos se mostram altamente contagiosos. A última epidemia de ideias atingiu 20 crianças, entre 12 e 14 anos. Depois de identificar que tipo de ganho teriam com uma experiência de intercâmbio e o que precisariam para torná-la possível, o grupo começou a trabalhar de forma coletiva. Realizaram a primeira parte, neste ano, ao receber os jovens do projeto Tamera, da região do Alentejo, em Portugal. Agora, trabalham pela outra metade. Querem conseguir o dinheiro para ir a Portugal. Fazem eventos, como oficinas de arte e circo nos finais de semana, pedem doações, assam bolos para vender. Juntaram até agora R$ 9 mil. A meta é ter R$ 100 mil até maio.
Resultados alcançados e planos para o futuro
A escola não tem a quantidade de alunos por série suficiente para participar da avaliação do Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Outras informações, no entanto, dão pistas sobre o impacto do modelo na aprendizagem das crianças: ao contrário do que ocorre na maioria das escolas públicas, o Âncora consegue ter 100% de crianças de 8 anos alfabetizadas. “Uma das características que o Âncora tem em comum com as demais instituições premiadas é o índice de evasão quase zero e a baixíssima ocorrência de bullying”, diz Débora Garcia, educadora do Canal Futura, que participou da pesquisa sobre escolas inovadoras.
Para entender e desenhar o modelo de ensino que queriam, Regina e sua equipe pediram ajuda no Brasil e fora dele. O trabalho dos educadores Maria Amélia Pereira, fundadora da Casa Redonda e do Colégio Vera Cruz, e José Pacheco, da Escola da Ponte, em Portugal, é o alicerce para o projeto educativo criado em Cotia. O ensino individualizado, a cultura de construir o conhecimento elaborando com as próprias mãos – a cultura maker, no termo em inglês – e o incentivo à autonomia da criança estão na base do projeto.
O Âncora agora se prepara para receber adolescentes para o ensino médio. A autorização do MEC eles já têm. Fila de alunos para o período, também. Quando ocorrer, o sonho estará completo? Regina sorri. “Sonhos crescem”, diz ela. O Âncora quer influenciar políticas públicas de educação em todo o país. Em Cotia, quer crescer a ponto de se tornar invisível. “Queremos o que fazemos aqui espalhado pelas ruas, praças, quadras. Por que a educação tem de se dar entre muros?”, diz Regina, arquitetando um outro sonho, bem maior.
Fonte: “Época”.
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