Um veterano no Tribunal de Contas do Município (TCM), José de Moraes, e um novato no Tribunal de Contas do Estado (TCE), Domingos Brazão, são exemplos de um dilema ético que ronda as cortes encarregadas de fiscalizar o Executivo. Com direito a nomear uma série de cargos de livre escolha, os conselheiros têm optado por pessoas bem próximas. No caso de Moraes, a escolha foi por sócios, beneméritos e diretores de um famoso clube na Ilha do Governador, do qual é comodoro de longa data. Já Brazão tem, por exemplo, em seu gabinete um advogado que o representou em diversas ações na Justiça. E, coincidência ou não, ainda vê tanto na Assembleia Legislativa (Alerj), onde até pouco tempo era deputado, quanto no TCE pessoas de sua confiança espalhadas por setores administrativos.
— A sociedade vive um processo de amadurecimento, e casos como esses, de uso dos cargos dessa forma, levantam a questão de que simplesmente o fato de algo ser legal não é o suficiente para torná-lo aceitável — analisa Gerson Leite de Moraes, professor de ética da Universidade Mackenzie, de São Paulo. — Não há uma distinção clara entre o que é público e o que é privado. E pessoas que ocupam cargos públicos, na política, deveriam se preocupar realmente com o que é bom para a coletividade.
Um gabinete por onde já passou até jogador de futebol
“Eu moro na Ilha (do Governador), e 90% dos meus amigos são de lá, são do Iate Clube (Jardim Guanabara), local que frequento desde que nasci”. Essa é uma das justificativas apresentadas pelo conselheiro do TCM José de Moraes para explicar por que dez dos 16 cargos que pode usar no tribunal por sua livre escolha foram para sócios, beneméritos ou diretores do clube do qual é comodoro. Ao todo, esses funcionários recebem mensalmente pouco mais de R$ 77 mil. Na lista, estão, por exemplo, o diretor-geral do Iate, Jorge Alexis Machado Santos, e o diretor de Engenharia, Marcus Pencai. Moraes está no TCM há cerca de 12 anos. Era vereador e foi eleito por unanimidade pelos seus antigos pares para o cargo que exerce. Com 69 anos, caso não haja mudanças nas regras da Previdência, poderá se aposentar em 2016.
Na terça-feira passada, antes da realização de uma sessão no plenário do TCM, o conselheiro recebeu o repórter de “O Globo” para uma entrevista. Ao ser perguntado sobre alguns nomes de seu gabinete, ele fez questão de ressaltar dois pontos: todos são de sua plena confiança e nenhum recebe salário por suas respectivas funções no Iate Clube Jardim Guanabara. Algum possível conflito ético nas escolhas?
— Nenhum, pelo contrário. Você tem mais problemas com pessoas que não conhece, em quem não tem confiança. Todos esses funcionários trabalham comigo há muitos anos, alguns desde a época da Câmara de vereadores. Para mim, é ótimo — responde José de Moraes.
A conversa segue e, mesmo sem ser perguntado especificamente sobre o assunto, o conselheiro emenda uma reclamação: discorda da legislação atual que não permite a contratação de parentes.
— Eram ótimos, eu acho, os familiares. Aquela questão de nepotismo que houve, que cancelaram, aquelas histórias todas… Eu acho isso um verdadeiro absurdo… Quem pode ser mais confiável para você? Um estranho ou seu irmão, que é supercompetente? Não estou falando no meu caso específico, mas acho que é muito melhor você colocar um primo seu, que conhece desde que nasceu, do que uma pessoa que você coloca porque conhece há dois anos e amanhã está lhe causando um problema.
Segue a entrevista, Moraes relembra um pouco sua trajetória: 12 anos como vereador, quatro como secretário municipal de Esportes… O tema “empregar parentes”, porém, volta à cena, e o conselheiro diz que quer deixar sua opinião mais clara:
— O que eu digo sobre essa questão do nepotismo é o seguinte: se você tem um irmão, uma cunhada, um tio ou um sobrinho com competência para estar em uma posição ou cargo, não quer dizer que por ser parente vai cometer atos que não sejam republicanos num departamento público. A minha opinião é essa.
Além de sócios, diretores e beneméritos do clube do qual é comodoro, o conselheiro também tinha, até pouco tempo atrás, um jogador de futebol, na verdade do chamado Fut7 (futebol society), empregado em seu gabinete. Roni dos Reis Rezende, que ficou cerca de um ano com Moraes no TCM, é um dos craques do Flamengo Iate-Modus — time cujo técnico é o próprio conselheiro.
— Ele ficou um tempo aqui comigo. Estava precisando, e eu estava com a vaga disponível. Ficou comigo um ano. Mas saiu para montar uma sociedade com um amigo dele — comenta Moraes.
Depois da primeira entrevista, o conselheiro encaminhou por e-mail a lista completa dos funcionários de seu gabinete, com os respectivos salários. Além dos 16 cargos de livre escolha, ele ainda tem outros cinco de assessoria técnica. Moraes também deu números da quantidade de processos analisados no seu gabinete, para ressaltar a produção de sua equipe. De janeiro a maio deste ano, por exemplo, foram 1.460.
Em letras maiúsculas, ele conclui o e-mail: “Não há nenhum funcionário em meu gabinete que seja funcionário do Iate Clube. Não me traz nenhum constrangimento, entre 10 mil associados e amigos de 50 anos, escolher oito ou dez destes com comprovada capacidade técnica e ótima formação profissional”.
Ex-deputado sai da Assembleia, mas seus ex-funcionários ficam
Sua escolha pode ter sido recheada de polêmica, mas o fato é que, há mais de três semanas, o ex-deputado Domingos Brazão já pode ser chamado de conselheiro do TCE. Além de um salário de mais de R$ 30 mil (fora benefícios), tem direito a 20 nomeações em seu gabinete, para cargos conhecidos como “de confiança”. Destes, pelo menos 15 já estão efetivamente na ativa, a maioria vinda de seu mandato na Alerj. Como Pedro Luciano Tenuto, advogado que o representou em pelo menos cinco ações na Justiça nos últimos dez anos. Entre os processos, houve até uma execução fiscal do governo estadual, extinta após a quitação dos débitos. Tenuto receberá um salário de R$ 9,5 mil no TCE.
“Os profissionais que trouxe para me assessorar no tribunal são fundamentais para o desempenho do meu trabalho como conselheiro. Tenho, entre esses colaboradores, um advogado da minha total confiança, que no passado me prestou assessoria jurídica e foi pago por isso. Que conflito ético existe nisso? Se um economista deixa a banca privada para se tornar ministro da Economia, se torna objeto de questionamento moral?”, alegou o ex-deputado por e-mail.
Outra curiosidade no caso de Brazão é que sua ida para o TCE não significou para muitos de seus ex-funcionários no gabinete da Alerj uma mudança de local de trabalho, nem a perda do emprego. Desde o início deste mês, 11 pessoas que tinham cargos de confiança do atual conselheiro foram incorporadas por setores administrativos do Legislativo estadual. Elas foram divididas por três departamentos: Patrimônio (que cuida dos bens da Casa), Gestão de Benefícios (que trata de auxílios aos servidores) e Expediente e Comunicações (que centraliza uma série de funções como controle de certidões e correspondência interna). A assessoria da Assembleia limitou-se a dizer que se trata “de bons funcionários, com anos de casa”. E Brazão ressaltou o “mérito e a competência” deles:
“Fui deputado estadual por duas décadas, e muitos desses colaboradores prestaram serviços ao meu gabinete durante anos. Sabem tudo sobre o trabalho legislativo. E, se lá permaneceram (na Alerj), é por mérito e competência de cada um desses profissionais. Não sei para onde foram, mas só tenho de agradecer pela dedicação que tiveram ao meu mandato”.
No pouco tempo de Brazão no TCE já aconteceu uma coincidência que vai além das paredes de seu gabinete. Ao menos um ex-funcionário seu dos tempos de Alerj já conseguiu um bom emprego no Departamento de Informática do Tribunal de Contas: é Antônio Carlos da Conceição Santos, nomeado no dia 13 de maio. De acordo com o site da Assembleia, ele ganhava pouco mais de R$ 2,5 mil no Legislativo. Na nova função, passará a receber R$ 11,4 mil.
Também no dia 13 de maio, saiu uma nomeação no TCE que ainda guarda seus mistérios: Gilberto Anchieta foi agraciado com o cargo de assessor da Coordenadoria de Segurança e de Prevenção e Combate a Incêndio. Numa pesquisa no site do Tribunal de Justiça, é possível verificar que um advogado chamado Gilberto Anchieta representou Brazão numa ação cível em 2013, mas a assessoria do conselheiro não confirmou se o novo funcionário é a mesma pessoa.
“Acabei de tomar posse como conselheiro do TCE, instituição soberana em suas decisões. A nomeação do senhor Anchieta é uma prerrogativa exclusiva do Tribunal de Contas, que certamente usou de critérios técnicos para sua contratação”, resumiu Brazão.
O pouco tempo na nova função também já foi suficiente para o conselheiro ter ao menos uma frustração. Ele chegou a nomear para seu gabinete no TCE a filha do ex-deputado Édino Fonseca Grazielli Loureiro Fonseca, mas, segundo Brazão, ela desistiu do cargo de R$ 9,5 mil: “Ela declinou do convite, pois foi aprovada para fazer sua segunda pós-graduação em Harvard. É especializada em direito público, com diploma de gestão empresarial na FGV. Se alguém tiver um currículo melhor, por favor que se apresente”.
Fonte: O Globo
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