A proposta de Reforma Administrativa (PEC 32) tem causado bastante polêmica. Neste artigo, farei algumas considerações sobre o tema, analisando o atual texto da reforma. Antes disso, no entanto, é necessário reforçar a importância, para o Brasil, da aprovação de uma boa reforma administrativa.
Conforme já argumentei em artigo anterior para o Millenium (https://bit.ly/33IowAi), ao analisarmos os dados, salta aos olhos a disfuncionalidade do setor público no Brasil. Para começar, temos uma despesa primária elevada (39,2% do PIB), número bem acima dos patamares verificados no mundo emergente. Assim, o Brasil gasta como se fosse uma “social-democracia” europeia
Nesse contexto, destaca-se também o gasto excessivo com funcionalismo ativo (13,2% do PIB). Esse valor também é bastante elevado no comparativo com outros países emergentes (México, Colômbia, Peru e Chile possuem gastos com pessoal ativo na faixa de 5% a 7% do PIB, por exemplo).
Outro dado que chama a atenção é o elevado “prêmio salarial público – privado” usufruído por segmentos do funcionalismo no Brasil. Para o governo federal, esse número está em 96%. Já para os estados, em 36% . Assim, não é surpresa que a folha de pagamento do funcionalismo demande tantos recursos.
Bom lembrar que o prêmio salarial considera trabalhadores do setor público e setor privado com mesma escolaridade, gênero, cor de pele, idade e setor de atividade econômica. Mesmo controlando todas essas variáveis, o funcionário público federal, por exemplo, tem uma remuneração bem mais elevada que trabalhadores similares que atuam no setor privado. Identificar em quais segmentos da máquina pública existe essa vantagem salarial buscando, assim, diminuí-la é um passo importante a ser dado o qual gerará impactos fiscais positivos. Um bom primeiro passo nessa direção seria a regulamentação do teto constitucional do funcionalismo, trazendo maior moralização para a máquina pública, além de economia de recursos
Vale notar também que os incentivos existentes na máquina pública são ruins. As progressões ocorrem de modo automático ou via obtenção de certificação, não havendo uma cultura de avaliação de desempenho efetiva que puna os servidores que performaram mal e bonifique aqueles que se destacam. Importante lembrar que muitos dos mecanismos de premiação do mérito existentes hoje na máquina pública foram distorcidos pelo corporativismo (na União, se há pagamento por desempenho na categoria quase que a totalidade dos servidores recebem)
Além disso, em várias carreiras, notam-se distorções que geram incentivos negativos.
Algumas delas são:
1) servidores já ingressam na máquina pública com remunerações elevadas,
2) o topo da carreira é alcançado em um período curto de tempo,
3) um número desproporcional de servidores alcança o topo da carreira.
Texto atual da PEC 32
Agora, vale analisarmos o atual texto da PEC 32. Como demonstrarei no decorrer desta segunda parte do artigo, o texto atual contém alguns avanços, porém ainda precisa de muitos ajustes.
Dentre os pontos positivos destacam-se:
1) Alterações no estágio probatório, buscando tornar o instrumento mais eficiente e dar maior flexibilidade para os gestores.
O modelo atual é pouco flexível, com eventual desligamento do servidor efetivo não estável que não tenha performado bem só podendo ocorrer ao final do período probatório, ou seja, após 3 anos. Além disso, o instrumento tornou-se pouco efetivo, sendo que poucos servidores são de fato desligados no processo (menos de 0,02% no caso do governo federal).
Assim, a PEC vai na direção correta ao definir que o estágio probatório terá um conjunto de seis avaliações de desempenho semestrais com a possibilidade de desligamento do servidor em caso de resultado insatisfatório em dois ciclos de avaliação (não será mais preciso aguardar três anos). Essa mudança é importante pois dá ao gestor maior flexibilidade para desligar, em um menor período de tempo, o servidor com má performance.
2) Estabelecimento de normas gerais para o uso de trabalho temporário no setor público diminuindo a insegurança jurídica existente hoje.
Atualmente, estados e municípios têm problemas na regulamentação do uso de trabalho temporário. Muitos nem sequer fizeram tal regulamentação. Para aqueles que já regulamentaram o tema, caso sua lei tenha divergências com a legislação federal, a insegurança jurídica é elevada.
A PEC 32 busca corrigir esse problema ao definir que a União poderá estabelecer normas gerais referentes à contratação por tempo determinado buscando, assim, diminuir a insegurança jurídica possibilitando maior uso de trabalho temporário no setor público. Isso é importante para dar mais flexibilidade para a máquina pública, além de ser positivo do ponto de vista fiscal.
Vale ressaltar, entretanto, que toda a provisão de pessoal temporário deve ser feita via processo seletivo simplificado com prazo máximo de contrato de seis anos
3) Novas possibilidades de desligamento do servidor
Atualmente, o servidor público estável pode perder o cargo em três situações. 1) Em virtude de sentença judicial transitada em julgado, 2) mediante processo administrativo e 3) mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho (ainda não regulamentado).
A reforma traz novas possibilidades de perda de cargo, com essa podendo acontecer mediante 1) sentença judicial proferida por órgão colegiado não sendo mais necessário, portanto, esperar o trânsito em julgado e 2) caso haja o reconhecimento de que o cargo ocupado pelo servidor se tornou desnecessário ou obsoleto.
Nessa questão, a PEC caminha na direção correta, pois é importante que a administração pública tenha condições de desligar novos servidores cujos cargos tornaram-se obsoletos ou desnecessários. Essa é uma flexibilidade importante que o setor público deve ter para adaptar-se a uma realidade cada vez mais tecnológica e inovadora.
Já entre os pontos negativos, destacam-se:
1) Não inclusão de atuais servidores, membros de poder e militares na vedação de benefícios.
A legislação traz a vedação de um amplo conjunto de benefícios. Alguns deles, como licença-prêmio, adicionais por tempo de serviço e progressões ou promoções baseadas em tempo de serviço, são recebidos por uma quantidade bem elevada de servidores. Outros, como férias acima de 30 dias e aposentadoria compulsória como forma de punição, são recebidos por grupos bem mais minoritários dentro da máquina pública.
Infelizmente, por falta de força (ou vontade) política a vedação desses benefícios só atingirá futuros servidores não englobando, por exemplo, membros de poder, atuais servidores e militares.
Além disso, alguns outros benefícios também poderiam ter sido vedados, como: licença remunerada para disputa de eleições, aposentadoria vitalícia e ocorrência do duplo teto.
A inclusão de todos na reforma é importante pois, primeiramente, ela agiliza e potencializa o ajuste fiscal nos entes subnacionais . Além disso, a não inclusão de membros de poder fragiliza o necessário combate aos privilégios do setor público, pois alguns dos benefícios mais distorcidos, como férias acima de trinta dias e aposentadoria compulsória como forma de punição, são usufruídos, em grande parte, exatamente por membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, os quais não estão englobados na reforma
2) Mudanças nas regras previdenciárias de agentes e policiais
A última versão do texto da PEC 32 parece querer consolidar juridicamente a aposentadoria integral e com paridade para certos segmentos da segurança pública ingressantes no setor público antes da entrada em vigor da Reforma da Previdência. Além disso, ao suprimir a expressão “agressão” do art.10 § 6º da EC 103, amplia as possibilidades de recebimento de pensão por morte integral e vitalícia para cônjuges e companheiros dos profissionais que atuam nesses segmentos da segurança pública.
Tais mudanças, mesmo que bastante sutis, são bastante negativas, apontando na direção de mais benefícios para o pessoal da segurança pública. Além disso, é equivocado tratar de temas previdenciários já pacificados dentro de uma reforma administrativa.
3) Categorias da segurança pública sendo consideradas como “exclusivas de estado”
O texto atual da PEC define que os cargos exclusivos de estado são aqueles que “exercem diretamente atividades finalísticas afetas à segurança pública, à manutenção da ordem tributária e financeira, à regulação, à fiscalização, à gestão governamental, à elaboração orçamentária, ao controle, à inteligência de Estado, ao serviço exterior brasileiro, à advocacia pública, à defensoria pública e à atuação institucional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, incluídas as exercidas pelos oficiais de justiça, e do Ministério Público” Além disso, serão considerados como tendo cargos exclusivos de estado diversos segmentos da segurança pública como: policiais federais, civis e legislativos, peritos oficiais, guardas municipais, agentes de trânsito e agentes socioeducativos.
Uma vez mais, notamos uma série de categorias da segurança pública buscando ampliar seus benefícios
Por fim, vale ressaltar um ponto no qual a PEC poderia ter avançado mais. Na temática de ocupação dos cargos comissionados, seria importante definir, na Constituição, que tais cargos não tem como característica exclusiva a livre nomeação, podendo parte deles ser preenchido via processo seletivo.
Como busquei demonstrar no artigo, o Brasil precisa urgentemente de uma boa reforma administrativa. Para a PEC 32 atingir tal objetivo, muitos ajustes na legislação são necessários.