A Constituição “estatal”: reduzindo o espaço da livre iniciativa
Um dos defeitos mais habituais da Constituição é o de garantir direitos sem se preocupar com os custos associados de sua prestação. Assim, por exemplo, o § 3 do Art. 17, no capítulo sobre os partidos políticos, diz que os “partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei.” Ora, é evidente que tanto o fundo partidário quanto esse “acesso gratuito” aos meios de comunicação são cobertos pelos impostos pagos por todos os cidadãos, quando na maior parte dos países os partidos políticos, associações de direito privado, devem responder eles mesmos por suas despesas, com base nas contribuições de seus associados ou quaisquer outras fontes, segundo regras legais. No Brasil, por exemplo, um partido não pode receber recursos de fontes estrangeiras, um resquício dos velhos tempos do “ouro de Moscou”, quando o Partido Comunista era sustentado pela União Soviética.
O Título III está dedicado à organização do Estado, sendo que o capítulo da organização político-administrativa admite, em seu Art. 18, a criação de novos estados e municípios através de plebiscito e de lei complementar federal. Ora, tendo ocorrido, logo depois de promulgada a Constituição, a criação de número excessivo de municípios sem qualquer viabilidade econômica, o assunto teve de ser regulado pela emenda constitucional n. 15 (1996), dada a absoluta dependência das novas unidades de transferências federais, em vista de sua total incapacidade em dispor de recursos próprios. Mesmo com essa limitação, estima-se que praticamente a metade das unidades primárias da federação não consegue fazer funcionar seus serviços essenciais (saúde e educação, por exemplo, mas crescentemente segurança e mesmo o quadro funcional) com base unicamente em seus próprios recursos, dependendo, por conseguinte, da redistribuição de verbas federais, o que sempre constitui foco de tensões políticas, de barganhas, quando não de chantagens recíprocas por ocasião de projetos importantes para o Executivo, que é quem controla a maior parte dos recursos públicos.
Mais adiante, em dispositivos do Título III, relativos à organização política, a Constituição abriu caminho para o aumento constante dos gastos públicos nos estados, ao fazer corresponder o número de deputados estaduais ao triplo da representação federal (Art. 27) e ao fixar ao máximo de 75% sua remuneração com respeito à dos federais; ora, no Brasil, qualquer limitação pelo teto de salários, subsídios, vencimentos ou quaisquer outros tipos de prebendas acaba sendo também um piso, além do qual várias categorias insistem em subir mediante expedientes de duvidosa validade legal, de escassa legitimidade e quase nenhuma moralidade (mas que ainda assim subsistem durante anos a fio de batalhas judiciais até as mais altas instâncias desse poder).
Outros dispositivos abusivos existiam no capítulo IV (Dos Municípios), cujo artigo 29 estipulava, na redação original, um numero de nove até um máximo de vinte e um vereadores nas localidades de até um milhão de habitantes; esse número podia ir até cinquenta e cinco vereadores nos municípios de mais de 5 milhões de habitantes. Conhecendo-se o espírito perdulário da classe política nos mais diferentes rincões do país, é evidente que ocorreu uma ocupação pelo teto dos limites constitucionais, com o decorrente aumento extraordinário dos gastos com a vereança e serviços associados. O assunto teve de ser regulado pela emenda 58 (2009), impondo limites mais estritos a vencimentos e despesas, o que não quer dizer que os gastos tenham sido reduzidos com a expansão e consolidação da profissão de político profissional nas última décadas.
Da mesma forma como ocorre, aliás, com os deputados estaduais (e em diversas outras categorias de servidores públicos igualmente), os vereadores têm seus subsídios fixados numa determinada proporção dos ganhos daqueles, o que certamente se traduz num alinhamento pelo teto de todos esses vencimentos.
A remuneração dos servidores públicos tem sido, desde sempre, um dos maiores problemas do Estado brasileiro, constantemente dominado por práticas patrimonialistas, nepotistas e fisiológicas, de forma geral, que fazem da grade salarial uma selva indescritível de regulamentos e disposições, chegando até mesmo a esse outro ridículo constitucional de se ter de fixar numa Carta Magna até quanto podem ganhar diferentes categorias de funcionários públicos. Registre-se que o assunto do teto constitucional foi objeto de longos anos de tergiversações e delongas, por parte de representantes dos três poderes, até que se chegou à fórmula – constantemente desrespeitada, registre-se desde logo – do limite correspondente ao subsídio mensal de um ministro do STF, aplicando-se a partir daí proporções correspondentes numa escala decrescente (emenda 41, 2003).
Aplica-se igualmente aos funcionários públicos a irredutibilidade dos subsídios e vencimentos (inciso XV do Art. 37), o que significa que, mesmo em situação de grave comprometimento das contas públicas, ou de crise econômica, o setor público, à diferença de qualquer outro setor da economia privada, terá de continuar arcando com as despesas, como se nada estivesse ocorrendo. Registre-se, também, que a isonomia de vencimentos entre os funcionários dos três poderes, assegurada no Art. 39, é em grande medida uma obra de ficção, tendo em vista a enorme disparidade entre eles, com o judiciário exibindo uma média salarial que corresponde aproximadamente a três vezes à do executivo. Para fins de aposentadoria, finalmente, emenda constitucional (20, 1998) teve de estabelecer que os proventos não poderão exceder a remuneração do servidor no cargo efetivo, em vista dos inúmeros abusos que vinham ocorrendo até então.
Este trecho é a terceira parte do artigo “A Constituição brasileira aos 25 anos: Um caso especial de esquizofrenia econômica”, escrito por Paulo Roberto de Almeida e publicado na revista “Digesto Econômico”. Leia a quarta parte.
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