Uma Constituição economicamente esquizofrênica
Não cabe estender ainda mais as demonstrações de irracionalidade econômica contidas na maior parte dos dispositivos constitucionais que pretendem assegurar a todos os brasileiros sua cota de felicidade terrena, se possível assessorados, assistidos, ajudados e financiados por um Estado generoso, concebido pelos constituintes como sendo capaz de pensar em tudo que o que poderia contribuir para a construção de uma sociedade justa, fraterna e igualitária. Que a Constituição tenha sido elaborada de forma improvisada, sem estudos de impacto suficientes, é prova, por um lado, o número exageradamente elevado de emendas constitucionais, aliás, um processo interminável, em todos os campos de sua indiscutivelmente ampla abrangência. Um estudo específico sobre a natureza, a motivação e, sobretudo, a duvidosa perenidade dessas emendas – já que constantemente corrigidas por novas emendas –, bem como sobre as inúmeras disposições transitórias – as originais e aquelas acrescidas ao longo do tempo – revelaria, por outro lado, o caráter verdadeiramente esquizofrênico do texto constitucional, aliás essencialmente mutável em todos os seus termos, exceção feita às chamadas cláusulas pétreas (algumas até sujeitas a dúvidas interpretativas).
A concepção básica da Constituição, seu espírito indisfarçável é a vontade de se corrigir limitações materiais da sociedade mediante um simples fiat legislativo. Parecem apenas ter se esquecido, os constituintes originais e todos aqueles que militam, desde então, por ampliar ainda mais a cornucópia de generosidades estatais, de que todas essas intervenções públicas, todas as medidas tomadas em favor de indivíduos ou de grupos, todos os programas de desenvolvimento e de promoção de bondades estatais requerem, como é natural no mundo real, alguma provisão, incontornável, de ativos reais (de tipo financeiro ou outro), que precisam ser extraídos de alguma atividade concreta. Esta não é, obviamente, nem pode ser, o processo de elaboração de leis pelas duas casas do poder legislativo, ou o ambiente algo surrealista dos escritórios da burocracia estatal, domínios nos quais parece reinar o moto perpétuo dos recursos infinitos e sempre disponíveis.
A exposição aqui conduzida sobre vários – não todos – os dispositivos constitucionais possuindo algum impacto direto ou indireto sobre a vida econômica do país permitiu revelar que os constituintes originais, assim como seus sucessores, atuaram e atuam sempre com uma visão grandiosa da felicidade geral da sociedade e do aperfeiçoamento econômico e social do país, mas numa ignorância tão crassa dos efeitos econômicos das medidas e dispositivos aprovados que só nos cabe culpá-los por ingenuidade, embora alguma incultura elementar também possa explicar a falta de lógica e de consistência econômica no curso adotado até aqui. Trata de uma espécie de corrida desenfreada em direção do bem-estar e da prosperidade, apenas que desprovida das bases materiais indispensáveis a esse tipo de empreendimento grandioso.
O equívoco elementar é obviamente o de pretender assegurar por via legislativa o aumento e a distribuição de riquezas unicamente produzidas pelo setor privado, o menos protegido ou incentivado num documento maciço, destinado a criar felicidade por meio de leis e decretos governamentais, num desconhecimento surpreendente de quais são as fontes de recursos com que devem trabalhar todos os legisladores e os burocratas estatais. O viés distributivista, anti-propriedade privada, dirigista e intervencionista é evidente em praticamente todos os títulos e capítulos da Constituição e não resta dúvida de que as mesmas concepções que animaram os constituintes de 1987-88 na sua vasta obra de correção de desigualdades e de injustiças permanecem intactas, talvez até mais desenvolvidas, nos legisladores que teoricamente seguem o espírito da Carta que já cumpriu o seu primeiro quarto de século com um número de emendas e de disposições transitórias provavelmente superior ao de artigos completos de diversas outras constituições estrangeiras.
Um dos erros, entre muitos, dos constituintes – desculpável, talvez, pela sua generosidade intrínseca, e de boa-fé – foi a de pretender construir um regime de bem-estar social, um sistema social-democrático avançado, característico de países da Europa ocidental, antes que o Brasil tivesse galgado patamares mais elevados de acumulação de riquezas e graus igualmente elevados de produtividade do trabalho. A maior parte dos países avançados criou uma rede – por vezes excessivamente generosa – de benefícios sociais, depois de terem alcançado níveis satisfatórios de renda e riqueza; o Brasil pretendeu fazê-lo num patamar ainda baixo de acumulação de fontes sustentáveis de criação de riquezas. O Estado distributivista – e intervencionista, cabe lembrar igualmente – é incapaz de fazê-lo nas condições atuais do contrato social criado pela Constituição de 1988; o próprio Estado, que no passado foi um indutor razoável do crescimento econômico e do desenvolvimento tecnológico, tornou-se, atualmente, até por força dos muitos interesses corporativos surgidos no bojo da Constituição, um obstrutor desses mesmos processos de crescimento e de desenvolvimento.
Tais erros podem ter sido cometidos pelos constituintes na crença ingênua de que estavam distribuindo o bem e repartindo uma riqueza desigualmente distribuída na sociedade. A constatação de que a via escolhida leva a impasses estruturais como os aqui constatados deveria promover uma conscientização e a adoção de uma outra rota. Persistir nos equívocos cometidos numa época de redenção do autoritarismo e de afirmação de direitos sociais não seria mais ingenuidade ou simples ignorância. Representaria uma demonstração de estupidez econômica incompatível com o nível de educação política – mas talvez não econômica – já alcançado pela sociedade brasileira.
Este trecho é a sétima e última parte do artigo “A Constituição brasileira aos 25 anos: Um caso especial de esquizofrenia econômica”, escrito por Paulo Roberto de Almeida e publicado na revista “Digesto Econômico”.
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