Entre as inúmeras fraquezas que caracterizam o ser humano, Hume destaca nossa tendência a maximizar os interesses imediatos, ainda que insignificantes, em detrimento de objetivos mais importantes, que, no entanto, dependem de um longo caminho para serem alcançados. Em resumo, somos míopes em relação aos nossos interesses mais significativos, porém mais longínquos.
As constituições, por estabelecerem procedimentos mais difíceis para sua alteração, servem como importante mecanismo para superar essa inconsistência decorrente da nossa miopia. Ao conferirmos status constitucional às regras do jogo democrático e aos direitos fundamentais, estamos buscando preservá-los de nossas irracionalidades, paixões e arroubos imediatos.
O fato de a Constituição ser um bom mecanismo para salvaguardar do jogo político cotidiano algumas instituições, valores e princípios que nos são relevantes, não significa, no entanto, que também não possa ser indevidamente utilizada para proteger vantagens e privilégios injustificáveis. Digo tudo isso em função do crescente debate sobre a necessidade de desvincular as despesas estabelecidas pela Constituição.
O raciocínio parece sensato. Em uma situação de crise, em que as receitas públicas declinam, não há como manter o padrão de gastos fixos, ou ainda crescentes, sem com isso aumentar o deficit público, levando o país a insolvência.
O problema, no entanto, é que o atual debate sobre desvinculação não distingue gastos decorrentes de interesses injustificáveis, que ampliam as desigualdades, de gastos decorrentes da realização de direitos como saúde e educação, essenciais à construção de uma sociedade minimamente justa.
Mais do que isso, os proponentes da desvinculação como regra deixam de lado uma sólida estrutura de despesas públicas, que não tem nada a ver com gastos sociais, como os empréstimos com juros subsidiados oferecidos pelo BNDES ou mesmo as inúmeras desonerações fiscais ineficientes e imorais, que custam muito mais para a nação do que o financiamento de direitos fundamentais.
Não há dúvidas, também, de que precisamos reformar a previdência pública, eliminando privilégios ilegítimos, e adequar a previdência privada à curva demográfica e à maior expectativa de vida da população brasileira, de forma que ela se torne sustentável ao longo do tempo.
Se é fato que o “compromisso maximizador”, que caracterizou o pacto constitucional de 1988, camuflou entre os direitos muitos desses privilégios que estruturam e fomentam a nossa profunda e persistente desigualdade, é inaceitável que não façamos um esforço para desfazer esse mal-entendido, separando verdadeiros direitos de meros privilégios.
Apenas uma leitura míope de nossa estrutura política e social aconselharia desvincular algumas despesas na área social e entregar ao nosso parlamento a discricionariedade para que ele determine o melhor destino a ser dado ao dinheiro público. Evidente que a vinculação não é suficiente para assegurar a eficácia desses direitos, como bem salientam os economistas Ricardo Henriques e Marcos Lisboa. Metas, avaliação, transparência e mesmo competição entre as instituições são essenciais para que o dinheiro seja bem gasto. Mas, para isso, é preciso que ele esteja lá, bem guardado, protegido das aves de rapina.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 30/04/2016
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