Você está no trânsito, com o carro parado no sinal. Alguém encosta em fila dupla e, quando o sinal abre, passa na sua frente. Cheio de raiva, você, se já foi aos EUA, pensa que lá seria muito difícil isso acontecer (não digo impossível, mas eu nunca vi) e sente saudades daquelas placas que dizem, por exemplo, “Quem está na faixa da esquerda é OBRIGADO a virar a esquerda”. Com um suspiro, você pensa no valor da ordem. E em como ela torna a vida mais fácil. “Se todos respeitassem as regras!”
É verdade que em muitos casos nós temos as regras, e que, como no caso do código de trânsito, essas regras nem são tão ruins assim. O que nos falta é a aplicação das regras. É o desrespeito a elas que mantém a nós, brasileiros, nesse estado, digamos, pré-civilizacional, como que pré-cultural. É fácil e, dependendo do nível de ressentimento, até um escape gostosinho falar mal do Brasil, ressaltando esse aspecto. Mas não sei se a razão exata de isso ser tão ruim já foi apresentada, e vou tentar uma resposta.
Os liberais gostam muito de louvar a competitividade. Muita gente que não gosta do capitalismo fala mal da competição, e de ter que competir. Cada grupo tem razão e, sem saber, num certo sentido estão até de acordo.
O liberal não está defendendo a competição de todos contra todos em todas as áreas. Não conheço um liberal que defenda, por exemplo, que as regras de trânsito sejam um impedimento a uma competição supostamente saudável por espaço, faixas e velocidades, nem que acredite, darwinianamente, que os carros mais adaptados, isto é, jipes de duas toneladas, devam executar a seleção natural contra os populares. O liberal pode ser contra a obrigatoriedade do cinto de segurança, mas certamente não é contra respeitar as filas. A fila, em todos os casos, é uma regra que limita a competição. O liberal não pretende competir no trânsito; quem compete em carro é piloto de corrida — e as corridas também têm suas regras. Realmente, uma sociedade em que se tem de competir no trânsito, em que você considera cada pessoa como um potencial rival em diversas situações cotidianas é uma sociedade de competição desenfreada. Se todos enxergam a todos como rivais em todas as situações — o motorista ao lado, o dono do bar que pode te enganar, o policial que pode te achacar, o gerente do banco que parece fazer algo semelhante ao policial, o burocrata que age como se você estivesse roubando o tempo dele etc. — é a chave para a violência irrestrita.
Se você produzir algo, outra pessoa — legitimada pela lei ou não — virá e tomará. Sem a segurança proporcionada por regras claras e duramente aplicadas, tudo parece transitório, e nada é garantido; nunca se pode parar de competir, e é por isso que se diz que “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”. Na verdade, todos gostamos de levar vantagem em tudo, mas acho que quase todos não têm o desejo sincero de levar essa vantagem às custas de outras pessoas. É a insegurança que cria a sensação de constrangimento; ou você toma o lugar do outro ultrapassando, ou nunca chega. E é por isso também que, no Brasil, as pessoas que se resignam e cumprem a lei acabam falando de si mesmas como se fossem santas, os grandes bodes expiatórios de uma sociedade violenta. Sob um certo aspecto, são mesmo.
Preciso dizer que essa é uma sociedade insuportável, em que o ressentimento e o desejo de vingança amesquinham a alma das pessoas? Ter de competir por tudo, o tempo todo, é insuportável.
Acabar com a competitividade, por sua vez, é utópico. O próprio discurso do mundo melhor é apenas uma arma retórica na competição por certos benefícios. Isso não quer dizer que o homem não tenha um desejo de cooperar. Na verdade, talvez esse desejo talvez seja tão grande quanto o de competir. É só observar o quanto as pessoas não se ressentem — até gostam — de pagar por aquilo que consideram honesto e bem feito. Eu, que mexo com textos, coopero com quem me paga; coopero com aqueles a quem pago. Não me considero rival do dono da sorveteria que frequento.
Mas eu tenho rivais profissionais. Posso me iludir o quanto quiser achando que “ser melhor” não significa “ser melhor do que alguém”; isso não muda nada. Nem muda o fato de que todos nós, excetuando uns poucos verdadeiramente santos, gostamos de vencer. Assim como nas corridas entre pilotos, porém, também há regras para a nossa competição. Não posso matar meus rivais, nem bater neles, nem gostaria de usar o aparato estatal contra eles (fazendo lobby pela obrigatoriedade de diplomas, por exemplo). Não posso sabotar seus trabalhos, não posso dar um curso com informações falsas, e também não me sentiria bem escondendo a existência de um bom dicionário.
O que é claro é que, se eu dirigisse e não tivesse de competir com outros motoristas, nem tivesse de competir com lojistas desonestos, nem tivesse de entregar uma parte tão grande do meu dinheiro a um governo que muitas vezes sequer explicita que está me cobrando impostos, eu teria mais energia para competir a boa competição, sem um desgaste tão grande.
É a famosa igualdade perante a lei, isto é, a presença dessas regras, e não apenas sua mera existência no papel, que permite a “boa” competitividade, e que viabiliza os aspectos mais especificamente humanos da vida. É a falta de aplicação dessas regras que mantém o Brasil nesse estado letárgico, em que as pessoas têm um ressentimento difuso de tudo, e que sustenta o sentimento contrário à competitividade em geral. Só que, como já observei, nesse ponto os defensores e os detratores do liberalismo acabam se encontrando. Talvez só não saibam disso ainda.
(Publicado em OrdemLivre.org)
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