Mesmo diante do mais acachapante “ato de contrição” do presidente Jair Bolsonaro, com a sua “declaração à nação”, como uma tentativa de se redimir dos ataques feitos a ministros da Suprema Corte e de ameaças de não cumprimento das suas decisões, muitos têm vaticinado que a “conversão” do presidente aos ritos, procedimentos e liturgias da democracia não seria sustentável. Acreditam que é só uma questão de tempo para que a dissimulação de Bolsonaro fique estampada e que a democracia brasileira venha finalmente a sucumbir.
Mais de Carlos Pereira
A sobrevivência venceu
Vaticínio semelhante tem sido feito por alguns analistas, tais como Robert Kagan (The Washington Post), Martin Wolf (Financial Times) ou David Frum (The Atlantic), em relação aos riscos que a democracia americana estaria correndo diante de um possível retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2024. Argumentam que, diante da baixa performance do governo Joe Biden, com sua popularidade diminuindo, abrir-se-ia caminho para que o ex-presidente retornasse a Casa Branca, o que, para esses analistas, necessariamente acarretaria uma crise da democracia liberal americana que eventualmente evoluiria para o seu colapso.
É como se um espectro do autoritarismo estivesse sempre rondando e prestes a solapar democracias indefesas e vulneráveis com a simples chegada de populistas ao poder, mesmo que por via de eleições livres, competitivas e justas.
A pergunta que precisamos nos fazer é a seguinte: saber se a conversão de populistas é sincera ou estratégica seria relevante para medir a força e resiliência de uma democracia?
A estabilidade democrática não depende das idiossincrasias autoritárias de seus governantes ou da conversão moral de populistas aos credos e princípios democráticos. Afinal de contas, as instituições democráticas existem justamente para garantir que todos, independentemente das suas crenças e valores, sigam as regras do jogo da democracia de forma impessoal.
James Madison afirma em O Federalista que, “se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”. Em outras palavras, se a democracia só elegesse pessoas afeitas aos seus valores, as instituições de controle não precisariam sequer existir.
Adam Przeworski argumenta no seu último livro, Crise da Democracia, que perder eleições é sempre uma fonte de desprazer, mas pode ser tolerável se as perdas não forem tão grandes e se o perdedor vislumbrar possibilidades reais de retornar ao poder no futuro próximo.
Entretanto, quando eleições oferecem riscos para que governantes de plantão e seus familiares percam suas vidas, liberdade e/ou fortuna, passa a ser muito caro tolerar uma perda eleitoral. Ou seja, a democracia corre riscos justamente quando as apostas sobre o que está em jogo forem muito altas; quando perder a eleição for sinônimo de desastre; quando as forças políticas derrotadas não tiverem uma chance razoável de ganhar no futuro.
Portanto, ao contrário do que muitos acreditam, o fato de Donald Trump não ter corrido nenhuma dessas perdas e ainda por cima ter chances de vencer as próximas eleições é um dos elementos que sugerem que a democracia americana não corre riscos.
Já no caso brasileiro, a “declaração à nação” foi um enquadramento de Bolsonaro às organizações de controle, funcionando como uma garantia de que uma eventual derrota eleitoral em 2022 não traria riscos proibitivos para ele e para os seus, quando comparados aos altíssimos custos da continuidade de uma estratégia confrontacional.
O grande teste da democracia não é eleger governantes comprometidos moralmente com seus valores, mas, sim, funcionar impondo restrições e limites a comportamentos desviantes, mesmo quando sob ameaça, sem quebrar.
Fonte: “Estadão”, 04/10/2021
Foto: Adriano Machado/Reuters