São diversos os impactos econômicos da Copa, e os mais importantes não têm propriamente de ver com o PIB ou com os empregos e os feriados, mas pertencem ao campo do simbólico. É incomensurável o poder de representação que possui o futebol, um retrato tão rico quanto amargo, como diz o mestre Roberto da Matta, da maneira pela qual o país sabe organizar o seu talento e seus valores dentro e fora do campo.
São quatro, ao menos, as lições.
A Copa, para começar, nos ensinou sobre globalização, esse monstro de mil faces e vilanias que, contudo, se apresentou em uma encarnação encantadora. Um jogo tão simples quanto apaixonante mobilizou rigorosamente todo o planeta, equalizando grandes potências e pequenos países subdesenvolvidos, bem como seus torcedores. Nenhum outro evento ou empreendimento, com exceção do comércio internacional, tem esse alcance. Como não fazer parte desse conjunto? Por que o Brasil é tão fechado e infenso ao intercâmbio comercial com outros países?
Como anfitriões, aprendemos que o evento vai bem além do que se passa dentro de campo. São milhares de peregrinos torcedores, paramentados com suas cores nacionais e nos oferecendo uma lição inesquecível de tolerância e fé no gênero humano: o contato com outras civilizações não dilui a nacionalidade, e pode se tornar uma celebração da diferença, especialmente quando todos se misturam sob o signo do respeito às regras, como é próprio desse jogo e das relações internacionais.
Só há benefícios em aderir aos paradigmas globais, e foi assim que chegamos ao “grau de investimento” e poderemos perfeitamente chegar à OCDE, especialmente se paramos com políticas heterodoxas e com a diplomacia “gauche”.
A segunda lição tem a ver com competitividade.
No plano esportivo, a Copa foi surpreendente pelo equilíbrio. O futebol é uma atividade democrática ao extremo, pois todo mundo sabe jogar. Os times ficaram mais parecidos, não existe mais jogo fácil, nem grandes diferenças de “qualidade”, como dizem os boleiros. É claro que há vantagens comparativas, recursos naturais abundantes, mas sem esforço, disciplina e infraestrutura, a bola não entra.
O futebol se globalizou, como a economia de forma mais geral e como a indústria e as finanças em particular. Não há como impedir a concorrência, ou ficar isolado do que se passa no resto do mundo. Na verdade, é difícil imaginar que uma seleção nacional tenha sucesso sem que seus jogadores participem das competições internacionais de ponta, de preferência jogando nos melhores clubes, onde quer que estejam. Se as seleções fossem adotar os critérios de “conteúdo nacional”, como se usa no Brasil para a prática de protecionismo industrial, ia ser como na época em que a Olimpíada era apenas para atletas amadores: mediocridade e hipocrisia.
A terceira lição tem a ver com a centralidade do público.
No imaginário global, o futebol é o terreno do talento e da excelência, da igualdade diante das regras, da concorrência honesta, que se repete em certames internacionais, nos quais os adversários trocam suas camisas ao final, independente do resultado, pois há algo maior em jogo, o desejo de satisfazer uma audiência exigente e ansiosa por aplaudir o gênio, bem como o jogo coletivo. O futebol, com sua lógica meritocrática, conquistou um público imenso, e é este o principal personagem desse espetáculo, a razão de ser de todo o exercício.
A primazia do cliente, como os telões colocados nos estádios, é novidade por aqui. As imagens do público e suas emoções se juntam aos dribles e aos gols, pois tudo é parte do mesmo espetáculo. O telão é o “selfie” da multidão, matéria de grande interesse de todos, pois equaliza os anônimos às estrelas e coloca o público no interior da festa e da foto. Vale tudo pelo aplauso, e um público satisfeito significa bilheteria gorda, patrocínio abundante, e espetáculos cada vez melhores. Assim é a lógica da economia de mercado.
Aqui no Brasil, em contraste, a julgar pelos campeonatos regionais, o público é uma consideração secundária. Prevalece uma lógica cartorial destinada a proteger e adular clubes “pequenos” que ninguém quer ver em ação, em decorrência de uma organização corporativista, onde as federações são controladas justamente pelos pequenos, que exploram os grandes, mais ou menos como ocorre nas federações industriais.
A quarta e última lição tem a ver com o gasto público e com o balanço financeiro do evento.
Há uma justificada irritação com o custo total dos estádios, alguns dos quais não servirão para nada, depois da festa. O brasileiro sabe fazer conta, especialmente quando se trata do seu dinheiro, e a Copa trouxe para as páginas esportivas, que todo mundo lê, muitas revelações incômodas sobre o modo como as autoridades conduzem grandes programas de desenvolvimento econômico. Foi um rude golpe contra a apatia do brasileiro diante do drama com as finanças públicas.
Percebe-se com clareza que o problema de achar o dinheiro para executar os gastos associados ao evento, como se observa genericamente para os programas de governo, simplesmente não pertence a autoridades brasileiras ligadas à organização da Copa. Como a ação dos políticos é redentora genericamente, e o hexa, em particular, não tem preço, tudo é barato mesmo quando superfaturado.
Tudo se passa como se houvesse uma fonte brotando do solo, uma riqueza real ou simbólica inesgotável, uma pródiga mina de ouro ou poço de petróleo, quem sabe uma gaveta mágica na mesa do ministro da Fazenda, ou algum artifício contábil de multiplicação de pães, ou ainda uma viúva milionária, tola e disposta a assinar qualquer cheque que lhe for solicitado.
A quarta lição, portanto, é uma maldição antiga: o dinheiro da viúva não tem dono. E mais: não temos os mecanismos institucionais apropriados para fazer escolhas entre prioridades tendo em vista recursos limitados. No Brasil, o orçamento público é uma relação de sonhos amparada por uma construção contábil engenhosa com vistas a fomentar duas crenças falsas: a de que há algum equilíbrio entre receita e despesa e a de que todos os sonhos expressos como despesa são possíveis.
Nosso orçamento público está precisando de uma vasta reforma, onde receitas, despesas e dívidas fiquem subordinadas a normas claras de sustentabilidade.
Em resumo, o legado econômico da Copa poderá ser muito rico se tivermos o descortino de tirar o devido proveito dos erros e dos acertos, sem as fanfarronices.
Fonte: O Globo, 6/7/2014
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