A corrupção desvendada no escritório da Presidência da República em São Paulo, no marco da Operação Porto Seguro, comandada pela Polícia Federal, mostra em ação uma forma de corrupção com marcas distintivas, que não podem ser simplesmente equiparadas à corrupção dita patrimonialista do Estado brasileiro. O mesmo vale para justificativas de que o PT, no dizer de dirigentes, caiu no erro de fazer o que todos os partidos fazem, como ocorreu no mensalão.
As tentativas de nivelar essas formas de corrupção, tudo reduzindo a um mesmo sistema, terminam por encobrir o que as diferencia, produzindo uma espécie de geleia geral. E essa geleia geral é extremamente perniciosa, pois a sua resultante é uma desresponsabilização dos atores envolvidos, indivíduos ou organização partidária.
No caso da Operação Porto Seguro, salta à vista o nível dos envolvidos: 1) a chefe do escritório da Presidência, Rosemary Nóvoa de Noronha, que se apresentava como “namorada” do ex-presidente Lula; 2) os irmãos Paulo e Rubens Vieira, diretores, um da Agência Nacional de Águas (ANA), o outro da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac); 3) José Weber Holanda, advogado-geral adjunto da União. Note-se que não se trata de personagens secundários, denominação que procura desqualificá-los, como se o PT não estivesse envolvido nessas indicações. A desqualificação tem o objetivo de produzir uma espécie de desresponsabilização partidária, como se o partido nada tivesse que ver com membros seus no alto escalão.
Pior ainda, Lula tem alguém de sua intimidade amplamente envolvida em crimes. É bem verdade que a vida privada do ex-presidente lhe diz exclusivamente respeito, o que não significa que suas repercussões em tráfico de influência, pareceres forjados e falsidade ideológica não devam ser consideradas em suas consequências propriamente públicas. A vida privada do ex-presidente Lula tornou-se pública pelos ilícitos e crimes cometidos por sua “namorada” e companheiros.
O caso dos irmãos Vieira é também emblemático, pois se trata de diretores de agências reguladoras, que deveriam zelar pelo cumprimento dos contratos e pelo interesse dos cidadãos em geral, em atividade técnica de cunho suprapartidário. Ora, com a chegada de Lula ao governo federal, essas agências foram literalmente aparelhadas partidariamente, perdendo progressivamente a sua função. O que estamos observando é o resultado desse processo de apropriação partidária do Estado, ganhando a corrupção um matiz propriamente ideológico.
José Weber Holanda tampouco é um personagem qualquer, atuando como vice-ministro e falando em nome do titular. Trata-se, é evidente, de um cargo da maior importância na estrutura estatal.
Logo, não podem ser todos esses personagens considerados como “secundários” ou “mequetrefes”, pois tal consideração seria um abuso para com os cidadãos deste país, incapazes de discriminar quem é quem. Na verdade, um desrespeito à coisa pública, à res pública, e à cidadania em geral.
A questão central é: como chegamos a isso?
Todos os personagens em causa têm uma história comum de militância petista, tendo ascendido na hierarquia estatal graças à sua adesão partidária. Seu “mérito”, por assim dizer, é partidário, o que significa dizer que o PT não se pode eximir dessa também sua responsabilidade. Se não houvesse tal volúpia de aparelhamento do Estado, provavelmente não estaríamos observando esses malfeitos.
Convém alertar para outro fato, cuja conotação ideológica é ainda mais nítida. O PT, em sua formação e mesmo em seus prolongamentos em certas instâncias e setores partidários atuais, caracterizou-se por uma postura anticapitalista, considerando, no dizer de Rousseau e Marx, a propriedade privada e o lucro como uma espécie de roubo. Da mesma maneira, o mercado sempre foi visto com desconfiança, concebido desordenado e carente de regras. Em suas versões mais radicais, alimentadas por certos “intelectuais” petistas, mercado seria equivalente a “mercado negro”.
Se o mercado é a mesma coisa que “mercado negro”, é porque, para eles, não seria constituído por um conjunto de regras. Não lhes ocorre que o mercado se define por relações contratuais, pela confiança, pelo respeito a esses mesmos contratos, pela liberdade de escolha, pela livre-iniciativa e pela liberdade em que esta está ancorada. Define-se, também, pela existência de tribunais que julguem infrações contratuais, pela elaboração de um sistema de leis que garanta a segurança jurídica, pela participação dos eleitores na escolha dos seus dirigentes, pela competição comercial e partidária, e assim por diante. Então, se o mercado é tido por “mercado negro”, as portas estão abertas para a corrupção ideológica, numa espécie de vale-tudo.
Nesse sentido, a corrupção para proveito pessoal, como é o caso do grupo de Rosemary, não deixa de ter uma conotação ideológica, mesmo em seus aspectos mais íntimos e prosaicos. Isso se torna ainda mais claro na corrupção partidária. Ambas estão enraizadas numa mentalidade de cunho anticapitalista. Segundo essa concepção, o mercado nada mais é que uma forma de enriquecimento ilícito e, na verdade, selvagem. Portanto, tudo seria permitido numa sociedade capitalista, aí incluindo a corrupção e, em particular, a corrupção política e ideológica. Os corruptos seriam “iguais” aos outros.
Quero dizer com isso que essa forma de corrupção atual se funda numa concepção antimercado, conforme a qual tudo seria permitido. As causas dessa corrupção não estão no “sistema”, como continua sendo apregoado, mas numa mentalidade antimercado, antidireito de propriedade e anti-Estado de Direito, que tudo nivela ideologicamente. E é esse nivelamento ideológico que abre espaço para essa associação entre corrupção e política.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 17/12/2012
Aqui é preciso acrescentar outro ponto. A corrupção na vertente marxista provém de uma isenção criada pelo tipo de associação. Quando uma organização ou partido é criado para mudar a sociedade, seus membros definem os fatos da História em função de seus objetivos. Entre eles, a necessária aceitação de que em uma estrutura corrupta a corrupção é aceitável, desde que praticada em nome daquilo que representam e não dos indivíduos que são. Por isso, como autorepresentantes da classe operária, do proletariado, da vanguarda revolucionária, etc., sempre estariam cometendo atos ilícitos em nome do fim último, os que os redime da culpabilidade individual. É por isso que não aceitam que seus dirigentes sejam culpados do mensalão. Mesmo sabendo que eles enriqueceram pessoalmente, a ideia é de que estavam prestando um serviço à causa.