O mais recente escândalo no país – a teia de interesses escusos dentro da maior empresa brasileira, símbolo que puxa o orgulho nacional desde sua fundação – dispara tiroteios entre exércitos situacionistas e milícias da oposição, sob densa fumaça eleitoral, deixando no ar a inevitável dúvida: mesmo com os mecanismos do Estado mais atentos e eficientes na investigação de bandalheiras, ilícitos e desvios, a corrupção tem aumentado nos últimos tempos? Ou os controles têm sido frouxos no combate às ações de larápios que capturam imensa parcela do tesouro nacional?
Vejamos. Calcula-se a conta da corrupção R$ 100 bilhões, com Brasil ocupando a 72ª posição na lista dos países mais limpos, organizada pela ONG Transparência Internacional. A título de comparação, aqui pertinho, o Uruguai está na 19ª posição e o Chile, na 22ª.
E não é por falta de prisões que a corrupção endêmica se espraia. Entre dezembro de 2008 e dezembro de 2012, o número de detentos no sistema penitenciário brasileiro por crimes contra a administração pública – corrupção e peculato, por exemplo – cresceu 133%, sete vezes mais que o aumento da população carcerária de então. Hoje, quase 3 mil pessoas cumprem pena por esses crimes.
A primeira resposta à questão é, portanto, esta: os mecanismos do Estado têm melhorado seu desempenho tanto nas apurações quanto nas prisões de criminosos; mesmo assim, a corrupção anda a galope.
Como se explica a aparente contradição?
Tentemos examinar a questão sob um feixe de fatores. O primeiro diz respeito às transformações por que tem passado a política neste ciclo que os sociólogos designam de sociedade pós-industrial.
A política esvazia-se de ideologia, na esteira da alienação que cresce com a abundância e da degradação dos mecanismos tradicionais da democracia liberal (partidos, parlamentos, bases políticas, oposições, etc).
A nova era descortina uma desoladora paisagem de competições ideológicas menos contrastadas e agora ancoradas, de um lado, em vastas organizações de interesses privados e, de outro, em burocratas da administração governamental e, ainda, em entes que abandonaram sua identidade de partidos de massas para alcançar o poder pelo poder (“cach-all parties – partidos do agarra tudo que puderes”). Nessa modelagem, também chamada de tecnoburocracia, os especialistas-técnicos acabam formando parcerias com empresas e políticos.
A política, por conseguinte, deixa de ser missão para se transformar em negócio.
Esse redesenho se projeta na paisagem mundial, com ênfase mais em um ou outro país, porém sem perder as características do modelo que Roger-Gerard Schwartzenberg designa de “a democracia das organizações”. Pulemos, agora, para nossas plagas tropicais, onde tal modelagem adquire proporções exageradamente enviesadas por causa de uma cultura política irrigada pelas fontes do passado.
Os clássicos da nossa sociologia, como Sérgio Buarque de Holanda, são unânimes ao apontar os “interesses individuais e os familiares intervindo no trato da coisa pública de tal modo que o Estado perde sua função precípua de mantenedor da justiça e da ordem, passando a funcionar exclusivamente em benefício dos grupos que o controlam”. A imagem que emerge é a da Grande Família.
O marquês do Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, afirmava haver, no Brasil, “políticos capazes de todas as coragens, menos a coragem de resistir aos amigos”.
E que empreendimento pode se oferecer aos amigos? Ora, as coisas da res pública, na crença de que o Estado é a mãe, o pai, o herói, o salvador do povo.Emerge, aqui, a figura do Estado-Providencial, com sua sombra se projetando sobre nossa cultura política.
Getúlio Vargas, o ditador, dá força ao conceito. Foi ele quem contribuiu para reforçar no país o que o pensador José Murilo de Carvalho nomeia como Estadania, a cidadania fincada nos vãos do Estado. Diferentemente do modelo inglês de formação da planilha dos Direitos, amparada, primeiro, nas liberdades civis, seguidas por liberdades políticas e, por último, os direitos sociais, o Brasil implantou, inicialmente, os direitos sociais, na sequência os direitos políticos e, por último, os direitos civis.
A pirâmide da Cidadania virou de cabeça para baixo. Essa inversão explica a valorização do Poder Executivo, capaz de prover necessidades e demandas dos cidadãos. A ilustração da vaca leiteira é recorrente: nela, todos querem mamar.
Deriva daí a fascinação das massas por quem detém o poder da caneta. Indivíduo e governo se confundem para deleite dos governantes. O falecido senador Parsifal Barroso recordava os tempos em que governava o Estado do Ceará: “aí vem o governo”. Era o que ouvia do povo que acorria para recebê-lo.
Fechemos o circuito: Estado providencial, expansão da vida econômica, cultura arraigada no familismo (filhotismo, nepotismo), tecnodemocracia em expansão, partidos e atores políticos ganhando fatias da massa administrativa, feudos distribuídos aos integrantes da base governista, competitividade acirrada, o que esperar de um país que entrou no ranking dos emergentes?
Conviver com o presente, mas deixando os pés amarrados à velha arvore dos “ismos”. Ainda mais quando o portfólio de riquezas se abre para os grandes negócios (petróleo, obras de infraestrutura, logística, etc). A potência emergente tem um olho no futuro e outro no passado.
O poder invisível, que age nas entranhas da administração pública, se expande. Para ele, vale a pena investir no crime contra o Estado. Ademais, a punição demora, quando ocorre. Os criminosos de “colarinho branco” acabam usando seu poder ($) para adiar a pena. (Estudos dão conta de que 96% dos danos à sociedade são causados por crimes de colarinho branco).
Fechar as comportas da corrupção mais parece utopia. Mas é possível usar a velha receita: mudando as regras da política, coisas boas poderão vir. Importa ter vontade de sustar a metástase que devasta o corpo político. E fazer circular um novo sangue.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 14/09/2014.
Prof. Gaudêncio. Tive a oportunidade de conviver e sugar de sua inteligência em breve período na Corporação Bonfiglioli.
Acompanho suas crônicas no Estadão e também aqui no IMIL. São oportunas, coerentes e densas de verdade.
Quero lhe pedir autorização para publicá-las em meu site: http://www.boletimcorporativo.com.br
Agradeço a gentileza de sua resposta.
Um grande abraço.
Alvaro Zomignani
9.8477.1809