Há que criar condições para que os negócios lícitos compensem mais do que os ilícitos
Não carece de fundamento a sensação generalizada de que o Brasil atolou numa crise ética sem paralelo nem precedentes. Ao menos quanto a isso estamos todos de acordo: “nunca antes na História deste país”. A quantidade de senadores e deputados implicados em investigações ou processos criminais perfaz uma desconcertante (e ativa) maioria política. Na mesma condição figuram ministros e ex-ministros, além do atual presidente da República e alguns de seus antecessores. Olhando de longe, a Praça dos Três Poderes parece um banco dos réus com ar-condicionado.
Assim é na União, assim é nos Estados. Para ficarmos num único exemplo, lembremos o Rio de Janeiro, um cartão-postal cujo síndico fugiu com o dinheiro da folha de pagamento e não deixou solução à vista.
Não estão errados, portanto, os cidadãos que se queixam da corrupção com palavras fortes e, por vezes, chulas. O que está errado é embarcar nas teses que identificam na “desonestidade dos políticos” e na vileza de seus corruptores a causa maior da encalacrada nacional. A escassez de probidade não é um traço genético que distingue os políticos profissionais de outros seres humanos. Fora isso, a crise brasileira – que conjuga um desmoronamento ético, um sufoco econômico e um esgotamento das formas atuais da nossa democracia representativa, com a deterioração acelerada da legitimidade das instituições, dos partidos e dos agentes do poder – é extensa demais para ter sido causada por desvios de caráter de um grupo circunstancial de parlamentares, empresários e governantes. Com a licença do lugar-comum, o buraco é mais embaixo.
Embora estejamos numa crise que também é ética, a solução não virá de cruzadas sectárias contra “políticos ladrões” – estas, que já se perfilam no horizonte, só vão piorar as coisas. Campanhas moralistas apenas vão contribuir para o acirrar a polarização do debate público, para promover o culto da força bruta e para elevar as chances eleitorais de salvadores da Pátria com perfil voluntarioso e autoritário. De quebra, há uma probabilidade crescente de assistirmos à desmoralização do Poder Judiciário (que ainda conserva credibilidade), seja de fora para dentro (pela frustração das massas que esperam um “justiçamento” exemplar dos corruptos, o que a Justiça não pode entregar, pois não pode funcionar como falange vingadora e redentora), seja de dentro para fora (o que viria como resultado de excessos ou abusos praticados pelos próprios juízes, movidos pela intenção, consciente ou inconsciente, de “jogar para a torcida”, numa conduta compromete a imagem da autoridade judiciária).
A corrupção não é “o” maior problema do Brasil, não é “a” fonte da crise, é apenas uma parte da crise. É evidente que políticos corruptos devem ser investigados, julgados e punidos, como quaisquer outros criminosos, mas o discurso delirante de que figuras milagrosas varrerão todos os corruptos da terra brasileira não tem base na razão. Esse discurso, que já se prepara para subir nos palanques, só vai piorar quadro nacional. Não nos esqueçamos de que a mesmíssima promessa (“varrer a corrupção” e “restaurar a moralidade”) animou personagens como Jânio Quadros, além de apoiadores de primeira hora do golpe de 1964. Deu no que deu.
O combate à corrupção é imprescindível, mas não é, nunca foi e nunca será um programa de governo. Já está mais do que na hora de aprendermos que a corrupção não é causa, mas sintoma de algo mais profundo, que não funciona como deveria. É verdade que, no plano superficial, ela é sintoma da impunidade: como o risco de um corrupto ir para a cadeia sempre foi muito baixo no Brasil (risco que só começou a aumentar de uns anos para cá), o grau de sucesso de práticas corruptas sempre foi muito alto. No plano estrutural, porém, que é o que mais importa, a corrupção é sintoma de anacronismos persistentes do capitalismo brasileiro, que não podem nem poderão ser resolvidos pelo Código Penal.
No Brasil, a corrupção deve ser compreendida como sintoma de um modo de acumulação de capital que, no fundo, é anticapitalista: rechaça a concorrência, o livre mercado, o mérito e o valor do trabalho. Há uma expressão bastante em voga, crony capitalism, que tem sido usada para descrever o capitalismo baseado em privilégios concedidos pelo poder político – que, em troca, obtém obediência cega, bajulação servil e as mais diversas formas de apoio político (veladas ou explícitas) dos “capitalistas” beneficiados.
O conceito de crony capitalism tem ajudado na análise de economias como a chinesa, onde há acumulação de capital, mas não há livre-iniciativa, mas bem que se poderia aplicar ao Brasil. Entre nós, o “capitalismo politicamente orientado” já foi apontado nos anos 50 por Raymundo Faoro (Os Donos do Poder) como um travo que nos separa da modernidade. Faoro tinha razão – e ainda tem. Muitas das grandes fortunas brasileiras preferem o compadrio ao livre mercado.
O combate policial e judicial contra a corrupção dificulta o jogo dos agentes do “capitalismo de compadrio” e por isso não pode faltar. Mas, repito, o buraco é mais embaixo. A prática de desviar frações do erário – esse ethos inconfessável e evidente da rotina política – é o método por excelência de gestão do patrimonialismo. Por baixo disso, prospera o modelo de acumulação primitiva que ainda vige no Brasil, na base do tráfico de privilégios, que sabota a transparência do Estado e a própria ideia de República.
Um programa para superar o atoleiro ético do Brasil atual deve contemplar não apenas o combate à corrupção. Acima disso, deve buscar novos marcos legais que prestigiem a concorrência leal e criem condições para que os negócios lícitos venham a ser – pois ainda não são – mais compensadores que os ilícitos. Será que isso é pedir demais?
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 20/07/2017
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