2. Os efeitos da crise argentina sobre o Brasil e o Mercosul
O agravamento da crise argentina, na sequência da aceleração dos seus índices de inflação, aprofundamento da perda de competitividade externa e constante recurso a um protecionismo que também prejudica a competitividade setorial de diversas de suas indústrias – somados a outros desequilíbrios monetários, orçamentários, fiscais e cambiais – introduz uma situação de instabilidade no Cone Sul, ao criar novos efeitos negativos no plano dos fluxos comerciais bilaterais e regionais e ao desempenhar, ainda que moderadamente, um efeito dominó sobre os fluxos financeiros e de investimentos para os países vizinhos, com destaque evidente para o caso do Brasil. Mesmo que os observadores externos sejam capazes de identificar as diferenças de situação entre o caso brasileiro – de relativa estabilidade no baixo crescimento – e o caso, bem mais grave, da Argentina – de profunda quebra de confiança na capacidade das autoridades econômicas de estabilizar o cenário macroeconômico –, parece inevitável que algumas consequências advirão para o Brasil da caminhada argentina para a beira do abismo, o que pode aproximá-la do caso infinitamente mais grave da rápida deterioração da situação na Venezuela, outro grande parceiro do Brasil no comércio regional.
O fato, também relevante, que o governo brasileiro demonstre solidariedade, compreensão e tolerância com os desvios e inconsistências macroeconômicas de seus dois principais parceiros na América do Sul – tendo inclusive patrocinado o ingresso, segundo alguns indevido ou até ilegal, do país caribenho no Mercosul – pode contribuir para consolidar a impressão, aos olhos desses observadores, de que o Brasil pode ver com simpatia algumas das medidas heterodoxas adotadas nesses países para fazer frente ao que parece ser uma péssima gestão dos seus assuntos fiscais, monetários e cambiais. Já algumas agências de classificação de risco vêm alertando para certas inconsistências do lado da política macroeconômica brasileira, como também para desvios setoriais registrados no plano das políticas industrial e comercial, algumas das quais já foram objeto de questionamento na OMC.
Assim, mesmo que o aprofundamento da crise cambial e monetária argentina não resulte, necessariamente, num efeito dominó em direção do Brasil, além de suas inevitáveis consequências no plano do comércio bilateral – aparentemente já apontando para novos patamares de declínio (automóveis, manufaturados em geral, energia) – o cenário prospectivo não prenuncia nenhuma melhoria no horizonte previsível. Resta saber o que poderia ser feito para minimizar os efeitos da nítida deterioração do quadro macroeconômico e setorial no país vizinho – e também na Venezuela – sobre o cenário econômico de curto e médio prazo no Brasil. Esses efeitos se exercerão nos planos do comércio, dos fluxos financeiros, cambial e de investimentos.
A redução da demanda argentina por produtos brasileiros de exportação – tanto pelo protecionismo deliberado, como pela indisponibilidade de saldos positivos – não poderá ser compensada facilmente, pois grande parte desse comércio era de fluxos administrados (no caso do acordo automotivo, por exemplo), levando-se ainda em contra que muitos dos países do continente sul-americano também se tornaram grandes clientes da máquina exportadora chinesa em manufaturados (que sempre foi o essencial das exportações regionais brasileiras). Um esforço adicional do governo e dos exportadores pode redirecionar parte do que está sendo perdido, mas, ainda assim, os níveis de preferência existentes ao abrigo dos acordos regionais no âmbito da Aladi talvez não consigam compensar inteiramente o que está sendo agora perdido, o que pode representar um problema grave para muitas empresas brasileiras. Com efeito, mesmo se o Mercosul tornou-se relativamente menos importante para o comércio exterior do Brasil como um todo – que diversificou e aumentou bastante seu comércio com a Ásia e outros países emergentes – o Cone Sul ainda era, e continua sendo, importante no plano microeconômico para dezenas, ou centenas, de empresas da região Sul ou até de outras regiões do Brasil, que não são competitivas ou não se interessam pelos mercados mundiais, concentrando suas vendas no âmbito do Mercosul e de outros vizinhos regionais (que também serão afetados pelo clima de erosão atual da confiança).
Os fluxos financeiros também serão afetados, talvez duplamente, ainda que de modo independente. Com o lento restabelecimento da situação nos Estados Unidos e uma ainda mais lenta minimização dos graves problemas na Europa, pode-se prever um redirecionamento de aplicações, provavelmente acelerada no caso de elevação das taxas de juros nos mercados avançados. Mas deve também se manifestar a mesma “fuga para a qualidade” de investidores institucionais e simples agentes especuladores a partir do agravamento da situação na Argentina e em alguns outros países, o que pode afetar o Brasil, acelerando a desvalorização de sua moeda. Ainda que o Banco Central possa, e deva, intervir nos mercados para corrigir ou minimizar parte dessas tendências, o esforço pode ser modesto para evitar consequências no plano inflacionário e das próprias transações correntes, já bastante abaladas pelo comportamento declinante da balança de comércio. A passagem do patamar de 4% do PIB no déficit de transações correntes pode precipitar certa fuga de capitais (inclusive de nacionais), o que resultaria no aprofundamento dos principais indicadores macroeconômicos em direção ao vermelho.
A morosidade da dinâmica econômica no Brasil também parece reduzir as perspectivas do lado dos investimentos diretos estrangeiros em direção ao Brasil, numa frente que costuma exibir tendências de médio e longo prazo. Mas esse é também um terreno que já foi impacto negativamente antes mesmo do agravamento da crise na Argentina, e que atinge os investimentos brasileiros realizados no país. Não se desconhece, por exemplo, o retraimento já registrado por parte de grandes empresas brasileiras – a Petrobras e a Vale estão entre elas – em função das medidas restritivas que vêm sendo tomadas, desde muito tempo, pelas autoridades federais ou provinciais que atingem os investimentos estrangeiros de modo geral, e os brasileiros em especial. Quando da nacionalização irregular e arbitrária da Repsol, por exemplo, o governo da Espanha montou uma operação defensiva muito eloquente em apoio a seus investidores privados; não se conhecem gestos similares por parte do governo brasileiro, pelo menos não de modo aberto e transparente.
Em quaisquer dos cenários, portanto – e o ambiente na Argentina ainda não se revelou em toda a sua inteireza –, as perspectivas para o Brasil podem ser mais graves do que o anunciado normalmente pelas autoridades econômicas ou políticas. O quadro é tanto mais incerto quanto mais desequilibradas podem ser as respostas argentinas aos desafios do momento, numa conjuntura em que tampouco os responsáveis brasileiros têm sinalizado claramente opções alternativas de política econômica mais eficazes ao que até agora se manifestou sob uma obscura “nova matriz macroeconômica”. Como sempre, metade do esforço, mais até do que os indicadores em si, tem de se apoiar num elemento intangível que se chama de “credibilidade” da (ou confiança na) capacidade das lideranças econômicas (e políticas) de adotarem as medidas corretas para responder aos problemas já detectados.
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