Acabou a farra. Esta parece ser a percepção de muitos diante dos acontecimentos recentes. Não dá mais para viver da farta liquidez que os bancos centrais dos países desenvolvidos proporcionaram ao mundo nos últimos anos, visando sair da pesada crise de crédito ocorrida em 2008. Autoridades monetárias como o Fed (EUA), o BCE (Zona do Euro) e o BoJ (Japão), adotando políticas frouxas, inundaram de liquidez os vários mercados emergentes ao redor do mundo. Com taxas praticadas próximas a zero, só restou aos investidores alocar seus recursos onde a arbitragem de juros fosse atrativa. Decorrente disso vivenciamos momentos de forte valorização das moedas dos emergentes.
Nos últimos dois anos, no entanto, esta “política de liquidez farta” foi sendo ajustada, as taxas de juros voltaram a ser elevadas (lentamente) diante dos riscos inflacionários, desmontaram-se as políticas de compra de ativos, os Quantitative Easing, e agora o que se vê é uma “readequação da liquidez global”, com os bancos centrais buscando uma “normalização”.
Nos EUA isso parece bem claro. A taxa de juros de curto prazo, o Fed Funds, de 0,25% ao ano foi sendo elevada gradualmente, em “escadinha”, em 0,25 ponto percentual e já se encontra no intervalo de 1,50% a 1,75%. Na reunião do Fomc do dia 2 de maio não houve alteração e agora a expectativa se volta para junho. Tem-se aqui a discussão de quantos ajustes ainda serão necessários neste ano. Dois ou três?
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Na semana passada, com os T Bonds de 10 anos a 3,1% ao ano, contra 2,8% há quatro semanas e 2,2% há um ano, o mercado deu uma “estressada” e passou a conjecturar sobre a possibilidade de mais três ajustes. Sendo assim, cabe a indagação. Qual seria afinal o “novo normal” para a taxa de juros norte-americana? Poderia estar entre 3% e 4%. Qual o impacto disso para os emergentes? Acabariam mais afetados os países com atraso na agenda de reformas, baixo nível de reservas e algumas incertezas institucionais. Neste caso, Argentina, Turquia, Brasil, Rússia, seriam os primeiros da fila. Falemos então da Argentina.
Por lá, a palavra de ordem é tentar reduzir a dependência externa, a fuga de recursos e dar a volta por cima. Um acordo com o FMI vem sendo “costurado” visando neutralizar o ataque recente à moeda argentina, o peso. No ano já se deprecia em mais de 34%, cotada entre 25 e 27 pesos por dólar. Comenta-se que o aporte (ou “financiamento preventivo”) do FMI deve chegar a US$ 30 bilhões, o suficiente para dar uma acalmada nos mercados. Soma-se a isso a rolagem da dívida pública de US$ 25 bilhões, obtida nesta semana, de forma integral, assim como a emissão de títulos, com prazos de vencimento para 2023 e 2025, a razoáveis taxas de juros, foram sinais de que o governo Maurício Macri ainda tem algum respaldo.
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Pelo lado dos fundamentos econômicos, a situação não é nada confortável. A inflação se mantém elevada, em torno de 24% pela taxa anualizada, estourando a meta deste ano, para muitos, ambiciosa, de 15%. Em abril o IPC foi a 2,7%, no ano acumulando 9,7%. Este, aliás, é considerado um dos erros da equipe econômica do governo Macri: ter definido uma meta irreal. Soma-se a isso o ajuste fiscal que segue muito lento. Tanto este como o externo, nos chamados “déficits gêmeos”, se mantêm elevados, acima de 5% do PIB. Já a taxa de juros foi fortemente elevada por estes dias, em resposta à saída de recursos, passando de 27,25% para 40% ao ano. Neste clima, a economia vem perdendo tração. No ano passado o PIB cresceu 2,9% e neste ano não deve passar de 2% ou menos, tal a crise de confiança instalada.
Pela lógica, tivemos um “efeito dominó” nas últimas semanas. Primeiro, os EUA ameaçaram acelerar o ritmo de ajustes da taxa de juros em resposta ao risco inflacionário. Isso acabou gerando alguma mudança de percepção dos investidores externos, em revoada para os títulos públicos norte-americanos. O dólar ingressou num processo de valorização, impactando mais os emergentes (alguns com fragilidades). Estes acabaram com as moedas mais afetadas, pontuando aqui Argentina, Turquia e Brasil. Em resposta, os bancos centrais adotaram os instrumentos à sua disposição, como a elevação forte do juro e a venda de contratos swap no futuro ou mesmo no à vista, significando “queima de reservas”. A Argentina já vem fazendo isso. Já queimou mais de US$ 10 bilhões, com estas recuando de US$ 61 bilhões para pouco mais de US$ 50 bilhões.
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Uma boa resposta parece ter sido o citado acordo com o FMI, em negociação. Isso, aliás, acabou inevitável depois de duas décadas sem recorrer à instituição multilateral. Macri, quando assumiu, conseguiu arrumar a casa, nos acordos com a dívida pública “dolarizada”, por ser esta financiada por investidores externos. Melhorou o ambiente de negócios do País, voltando a atrair investidores externos, embora o ajuste realizado tenha sido lento. Aqui, a constatação é de que o País ainda é muito “preso ao passado”, às pressões dos sindicatos peronistas, se apoiando numa composição política frágil e numa linha tênue do meio empresarial.
Interessante atentar que no caso dos argentinos tudo gira em torno de uma questão: ter ou não dólares.
É isso que move o país. A sucessão de planos mal sucedidos, crises cambiais, instabilidades, rupturas, calotes, deram aos argentinos tal sentimento de insegurança, de desconfiança em relação à sua moeda e ao governo de ocasião. Estudos informais em Wall Street indicam que os argentinos são o povo mais desconfiado do mundo e por isso o segundo mais dolarizado, só atrás (é claro) dos EUA, depois seguido pelos russos. São cerca de US$ 240 bilhões guardados debaixo do colchão e não no sistema bancário de Buenos Aires e outras províncias. Isso posto, se faz imenso o desafio de Maurício Macri de restabelecer a confiança dos agentes por estes tortuosos dias de debandada de recursos.
+ Hegedus: Retomada mesmo que lenta
Sobre os impactos desta crise no Brasil o que pode vir num momento imediato?
Deveremos ter alguma perda no fluxo comercial com a Argentina, afetando nossas vendas de automóveis e outros bens, e um “efeito contágio” no exterior, pelo fato dos investidores enxergarem no Brasil em situação parecida com a Argentina. Talvez seja um pouco do rescaldo do que estamos sofrendo por estes dias. O fato é que esta crise na Argentina nos coloca na urgência das reformas e numa agenda econômica mais realista.
Que assim seja.