O Brasil vive uma crise de autoridade, justificada por alguns como se fosse algo próprio da democracia. Há um atropelo de prerrogativas de um Poder constitucional sobre outro, mormente pelo Judiciário, que invade competências alheias (o Ministério Público também o faz). Para os agentes de tais atos, tratar-se-ia de um fortalecimento das instituições, quando estas, na verdade, terminam por se enfraquecer. O desequilíbrio torna-se patente. Não há democracia consolidada que não esteja fundamentada no exercício da autoridade. Sem esta se abre caminho para o esgarçamento das próprias instituições democráticas.
Exemplos particularmente claros dessa invasão de competências se encontram em atos de ministros do Supremo Tribunal e da Procuradoria-Geral da República (PGR), que passam a decidir por si mesmos, muitas vezes à revelia da Constituição. O ministro Barroso, por exemplo, em nome de suposta vontade popular ou clamor da sociedade, decide sobre um indulto do presidente, como se pudesse legislar e tomar o seu lugar. O mesmo ministro decide em ato monocrático abrir o sigilo bancário do presidente, prescindindo da própria opinião do Ministério Público.
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A PGR pretende abrir investigação sobre atos do presidente anteriores ao seu mandato, como se investigar não fosse uma forma de responsabilizar uma pessoa. Entramos no terreno do opinar, sem que os argumentos aguentem uma análise mais detida. Juízes e promotores começam a brincar com as palavras, como se, por seus meros atos de linguagem, estivesse em curso uma batalha contra a corrupção. A Constituição, de texto, torna-se um pretexto para atos de “interpretação”, que são, mais simplesmente, de mera opinião.
Diria que a questão é de natureza hobbesiana, isto é, quem decide em última instância os assuntos do Estado. Em termos desse filósofo: quem seria o soberano? O que temos observado nos últimos tempos é um protagonismo do Judiciário, tomando a si essa decisão, como se a ele coubesse a última palavra. Numa exacerbação dessa atitude, ministros do Supremo, em decisões monocráticas, representam-se acima da função presidencial. O problema é de monta, pois juízes, promotores e policiais não são eleitos, mas fruto de concurso público. Não exercem, pois, nenhuma função política de representação. Não são representantes do povo, a quem incumbiria a escolha em eleições.
Há uma suposta normalidade, que é, na verdade, enganadora, por ser expressão de algo extremamente problemático, relativo à arte mesma de governar e às suas condições próprias de exercício. O problema não diz respeito tão só, embora tenha agora essa aparência, ao governo atual, mas concerne a qualquer um que venha a dirigir o País. A questão ganha ainda outra dimensão, pois tal desvirtuamento de competências é amplamente apoiado pela sociedade, que vê no Judiciário e no Ministério Público defensores da moralidade pública.
A Lava Jato tornou-se, nesse aspecto, um símbolo nacional. Há, evidentemente, razões de sobra para essa atitude da sociedade, na medida em que políticos e partidos, no Executivo e no Legislativo, se tornaram agentes da corrupção e do desvio de recursos públicos. A imagem desses dois Poderes é muito ruim, por obra do que eles mesmos fizeram. Há, todavia, em curso uma deformação de caráter institucional, visto que Judiciário e Ministério Público se apresentam como a encarnação da ética, mesmo quando assumem posições nitidamente imorais, como na defesa dos seus privilégios, quando da abortada reforma da Previdência ou, agora, numa greve para a manutenção de um substancial auxílio-moradia. Os benefícios particulares surgem velados sob a máscara da luta contra a corrupção.
Reitere-se, aqui, uma condição própria das sociedades democráticas. Os membros do Poder Legislativo e os titulares do Executivo são eleitos, escolhidos pelos cidadãos. Eis um fato da soberania popular, por mais perniciosos que possam vir a ser os resultados dessa escolha. Há outras vias, como a autoritária, em que não há escolhas eleitorais, mas a designação pura e simples dos governantes pelos que detêm o uso da força. Se o Judiciário e o Ministério Público, não escolhidos pelos cidadãos em processos eleitorais, estiverem enveredando pelo caminho de serem eles os “governantes”, estariam entrando num processo de tipo autoritário, embora com o apoio da sociedade, farta dos políticos.
Uma forma de resgate do equilíbrio entre os Poderes e, mesmo, da soberania popular por intermédio de seus representantes seria, por exemplo, a Câmara dos Deputados promulgar decretos legislativos anulando atos excessivos tanto do Ministério Público quanto de ministros do Supremo. Seria uma sinalização de que há limites no que diz respeito à competência da Suprema Corte, cabendo ao Legislativo exercer sua função própria de representante do povo. Atos monocráticos de ministros não são atos de representação popular, que só podem ser exercidos por aqueles que se submeteram a processos eleitorais.
O resultado de todo esse processo é um nítido enfraquecimento da posição do presidente, com este nem podendo exercer convenientemente a sua autoridade estatal. Vê-se obrigado a dar explicações todo o tempo, descuidando-se, em consequência, das atividades propriamente governamentais. Justifica-se incessantemente, quando o País tem urgências que não vão merecer, então, o tratamento adequado. O presidente, na verdade, encontra-se encurralado, como se os artífices desse processo de cunho político tivessem como único objetivo enfraquecê-lo. Para além de uma questão eleitoral, há o problema do exercício mesmo da autoridade. Aparentemente, trata-se do presidente Michel Temer, quando a questão diz respeito não somente a qualquer presidente que venha a ocupar o seu lugar, mas ao destino da democracia brasileira.
Fonte: “Estadão”, 19/03/2018